As mosqueteiras
Tiago, Lílian, Remo, Sírius, Pedro, Marlene, Andrômeda não me pertencem.
"Uma por todas e todas por uma"
No castelo praticamente vazio daquele natal, quatro grinfinórias sabiam que tinham pelo menos umas às outras. Juntas, podiam superar problemas do passado e sonhar com um futuro que viria depois da guerra e das lágrimas... Numa louca aventura de férias, as correntes de tristeza que as sufocavam no castelo se dissipam.
Inspirada no livro Fugitivas, de V.C.Andrews
------------
Capítulo 1. As mosqueteiras
Abri os olhos e mirei as cortinas de veludo vermelho que isolavam minha cama do resto do dormitório. Um som de choro fraco cortava o silêncio da torre. O dia anterior havia terminado com mais uma leva de más notícias. Como sempre acontecia depois disso, os dormitórios todos eram tomados por um silêncio quase que absoluto, exceto por aqueles gemidos dolorosos.
As informações sobre as novas vítimas da guerra espalhavam-se pelo castelo mais depressa do que pelúcios eram capazes de encontrar galeões. Quando se tratava de descobrir qualquer coisa sobre aqueles que tiveram algum parente morto ou seriamente ferido na guerra, todos os alunos se tornavam de repente estudiosos muito aplicados. A maior parte dos estudantes se sentia na obrigação de compartilhar com todos qualquer coisa que ouvisse, principalmente porqueem geral as notícias oficiais só chegavam muitas semanas depois da tragédia ter acontecido. Dessa forma, a "rede de informações paralelas" de Hogwarts era a forma como as notícias tristes se difundiam.
Segundo Jessie McClagan, uma fofoqueira da trupe de Berta Jorkings, dessa vez haviam sido os Bones as vítimas. Quase toda a família fora morta num atentado e Amélia Bones estava desde a noite anterior na enfermaria tendo uma crise nervosa. Edgar Bones tinha permanecido várias horas olhando em silêncio as chamas da lareira. Sem muito esforço, eu podia adivinhar que aquele choro devia estar vindo do dormitório do terceiro ano, onde dormia Janet Bones, a mais nova dos irmãos, agora órfãos.
Continuei deitada na cama, lembrando de como minha amiga Aine Bagman havia chegado à escola no início daquele ano letivo. Ela tinha perdido os paisdurante o verão e passou várias semanas irreconhecível, totalmente infeliz. Mas pelo menos ela não tinha que chorar sozinha na cama. Eu eoutras três garotas que ocupavam aquele dormitório éramos o mais próximo que se podia chegar de irmãs que tinham um sangue em comum. Eu (Lílian Evans), Marlene McKinnon, Aine Bagman e Andrômeda Black tínhamos pelo menos umas às outras e isso valia muito naqueles tempos em que as esperanças estavam tão baixas que era difícil imaginar que um dia voltariam a subir.
Convencida de que meu sono estava perdido para sempre, me levantei e abri as cortinas da cama de dossel, encontrando um quarto pintado de laranja pela luz do sol que rompia a neblina. Ainda me sacudindo para espantar o frio e o sono, me aproximei da janela que dava vista para o lago, à essa hora tão negro quanto os cabelos de Marlene McKinnon, que se espalhavam e apareciam por uma fresta aberta na cortina da cama. Pequenas cristas se erguiam acima do negrume, dando conta da lula gigante se locomovendo de uma margem a outra.
Me deixei ficar alguns minutos ali, imaginando que o inverno logo se revelaria sob a forma de uma camada de neve de vários centímetros que deixaria ilhado o castelo e a pequena cabana do guarda-caças da escola, que se projetava nas dimensões de uma caixa de fósforos às margens da Floresta Proibida. Quando isso acontecesse, Filch, o zelador da escola, seria visto pelos corredores praguejando contra os estudantes que entravam espalhando neve pelo salão principal e distribuindo detenções. A maioria dos primeiranistas ficaria tão assustada com aqueles olhos avermelhados de fúria esquadrinhando cada canto do castelo, que olharia várias vezes antes de se atrever a andar pingando neve e água e se reteria por vários minutos do lado de fora, esperando que o vento os secasse - ou lhes causasse uma pneumonia, o que viesse primeiro.
Filch e sua gata, Lady Mirra, eram o bastante para proporcionar aos novatos pesadelos pelo resto de suas vidas. O fato de ele haver sido qualificado para trabalhar numa escola era, como dizia Andrômeda, a prova definitiva de que os bruxos realmente tinham uma lógica duvidosa. Andy vinha de uma longa e tradicionalíssima linhagem de bruxos. Talvez por isso sempre se referisse a essas famílias de bruxos "de sangue puro" como se ela mesma não fosse membro de uma delas.
Esfreguei os olhos e girei os pés para seguir para o banheiro. Na cama, Marlene se mexeu e sua perna escorregou para o chão. Eraum consenso entre nós quatro que Marlene era de longe a mais bonita do nosso ano -sim, ela mesma, em sua imensa modéstia,concordava conosco. Tinha um rosto de feições muito harmoniosas, lábios bonitos, olhos marcantes com sobrancelhas perfeitas e longos cílios e cabelos cor de ébano que lhe desciam até o meio das costas.
Percebendo que com mais um mínimo movimento minha amiga despencaria da cama, me aproximei e abri as cortinas da cama dizendo:
- Ei, bela adormecida! - Marlene fez apenas um movimento para esconder a cabeça debaixo do cobertor para se esconder da claridade que agora tomava completamente o quarto. - Acorda, McKinnon, já está tudo claro e o café já deve estar sendo servido. Se não levantar, as melhores torradas já vão ter sido comidas e o mingau vai estar todo mexido quando você descer!
Nada. Nem sequer uma mínima contração muscular ou um murmúrio de "vai se danar, Lílian!". Cruzei os braços com impaciência e resolvi tomar uma providência drástica:
- Marlene, os elfos domésticos acabaram de trazer sua capa violeta da lavanderia e parece que a cor dela mudou pra rosa.
Como se tivesse levado um choque, ela se ergueu do emaranhado de cobertores, lençóis e travesseiros, pulando da cama para cair sentada no chão.
- Bom dia! - falei, no tom mais cândido que podia.
- Minha capa violeta... - murmurou Marlene, desorientada.
- Está em perfeitas condições pendurada no seu armário. Esqueceu que ela foi devolvida já faz dois dias? - e segui para o banheiro, muito satisfeita, deixando uma Marlene ainda desnorteada, procurando os chinelos no meio dos cobertores que haviam despencado da cama junto com ela.
- Hoje é sábado, por que não podemos dormir até mais tarde num sábado? - resmungou Marlene, assim que conseguiu se levantar e se juntar a mim na frente do espelho do banheiro.
- Vou abordar o assunto na próxima reunião dos monitores - gracejei, com a voz empapada de espuma da pasta de dentes.
- Estou falando sério - retrucou Marlene. - Essa coisa de simulado aos sábados definitivamente tem que acabar.
Sorri, terminando minha higiene matinal, e voltei para o quarto a fim de acordar as outras. Encontrei Andrômeda já de pé, com o rosto vermelho, agitando as mãos com ansiedade enquanto olhava para dentro das cortinas ao redor da cama de Aine.
- Ela começou de novo - murmurou para mim, angustiada. - Parece que foi petrificada ou algo do tipo!
Gritei para Marlene se apressar e me adiantei para a cama de Aine. Ela estava deitada com as pernas encolhidas, as mãos fechadas comprimidas contra a testa, os olhos apertados com força, os lábios contraídos. O corpo todo tremia.
Marlene se juntou a nós rapidamente e foi a primeira a tentar agir de alguma forma, segurando Aine pelos ombros e sacudindo-a com força dizendo:
- Aine, pare com isso. Você não pode continuar assim, se te virem desse jeito vão te mandar pro St. Mungus e nunca mais você vai conseguir sair!
Não houve qualquer reação e eu puxei Marlene, cochichando ao seu ouvido com urgência:
- Esse é o seu jeito de acalmar outra pessoa?
- Não, Lílian, esse é meu jeito de... - mas ela não completou a frase. A um olhar severo meu, ela abaixou a cabeça e seguiu a ordem silenciosa de trancar a porta do dormitório.
Andy puxou as cortinas da quinta cama do dormitório - só pra conferir se estava vazia como o usual. Sua ocupante, Héstia Jones, não tinha uma noite completa no dormitório há um bom tempo.
Logo em seguida, eu, Andrômeda e Marlene nos sentamos nas beiradas da cama de Aine e começamos a falar todas ao mesmo tempo, aos sussurros, pedindo que Aine se acalmasse e voltasse para nós, suas irmãs.
Em poucos minutos, Aine tinha aberto os olhos e corria os olhos de uma a outra, confusa.
- O que aconteceu? - perguntou.
- Está tudo bem agora - falei, afagando a cabeça dela como se faz a uma criança. - Vamos nos vestir e descer para o café, eu realmente tenho que reler aqueles usos do sangue de dragão antes do simulado.
------------
Eu observava em silêncio enquanto Aine recarregava seus vários vidros de tinta colorida à mesa de café da manhã. Aquela miniatura de garota de dezessete anos já tinha batido um prato grande de mingau, uma bandeja inteira de torradas e umas duas taças de suco de abóbora. Agora cantarolava completamente feliz, como se o acontecido há apenas alguns minutos no dormitório do sétimo ano da grinfinória simplesmente não lhe dissesse respeito.
Aparentemente, a tática de Lílian a havia feito voltar sem que ela sequer se lembrasse do que a tinha atormentado durante o sono. Lily assegurava que o som de várias vozes humanas conhecidas a ajudavam a se sentir segura para voltar ao normal. Eu não entendia muito bem e nem sabia de onde ela tinha tirado aquela teoria, mas até o momento vinha funcionando e era isso que importava afinal.
Mais uma vez tinha dado certo naquela manhã. Ainda assim, sentadas, esperando pela chegada do correio, eu, Lílian e Andy trocávamos olhares apreensivos fazendo a mesma pergunta: e quando não funcionasse mais?
Nós quatro tínhamos um acordo não expressado de não mencionar as crises de Aine a ninguém. Tínhamos apenas nos apressado em nos vestir e descer para o café no salão principal. Ocupamos nossos lugares habituais numa das extremidades da comprida mesa da grinfinória. À medida que a manhã avançava, as mesas se enchiam de mais e mais de estudantes - os do sétimo ano estavam levemente alvoroçados com a perspectiva do simulado para os N.I.E.M.'s.
E eu mal havia tocado na comida, apenas observava em silêncio o movimento de taças e pratos. Os elfos como sempre haviam feito um ótimo trabalho enchendo aquelas mesas com fartura e nada mudara significativamente desde que eu tinha chegado ao castelo para cursar o primeiro ano. O castelo inteiro parecia estático no tempo e nas estações, mudando apenas no que dizia respeito às temperaturas e às vestimentas dos ocupantes. As mesmas escadas simulavam portas e as mesmas portas fingiam estar trancadas há centenas de anos para importunar os alunos. As mesmas armaduras gemiam assustadoramente durante a noite e rangiam seus braços enferrujados e os mesmos quadros se moviam nas molduras se intrometendo e fofocando sempre que alguém ameaçava lhes dar mais atenção do que daria a uma parede.
Ainda assim, me peguei sendo nostálgica naquela fria manhã de dezembro, imaginando que ia sentir saudades quando o ano letivo terminasse e eu voltasse para casa com um diploma e a perspectiva de jamais voltar a mirar aquelas mil torrinhas luminosas se refletindo no lago, quando a carruagem que nos trazia de Hogsmead se aproximasse da escola, a cada primeiro de setembro.
Aine ainda cantarolava quando as corujas irromperam pelas janelas do salão principal, deixando cair uma enorme variedade de pacotes pelas cinco longas mesas - uma para cada uma das quatro casas de Hogwarts e uma para os professores. Lílian logo estava mergulhada atrás de um jornal, enquanto Andrômeda se concentrava em abrir as cartas de seus familiares com um ar de desagrado. Aine pegou o caderno de esportes do jornal de Lílian e se pôs a procurar notícias de seu irmão, que batia pelo time de quadribol da Inglaterra. Eu peguei a carta que havia recebido de casa e a amassei com descaso, atirando-a dentro de uma jarra de suco vazia.
Cada uma de nós tinha algum tipo de problema de família. Andrômeda estava sendo empurrada para um casamento arranjado pelos pais. Eu mesma não suportava mais minha família de criação - meus tios e minha avó. Minha mãe havia passado muitos meses trancada na sessão de psiquiatria do Hospital St. Mungus antes de morrer. E Lílian, apesar do seu ar racional e controlado, tinha grandes problemas em controlar mágicas involuntárias diante dairmã, que não suportava magia e a atormentava sempre que estava em casa.
Aine, a única que antes tinha uma família normal, agora era órfã e vivia com o irmão Otto Bagman, muito afeito a enfeitiçar máquinas trouxas. Lílian dizia que com certeza havia algo mais grave aí, mas nenhuma de nós nunca pressionara Aine, temendo que ela se transformasse permanentemente numa estátua inerte.
Aine sempre falava como a família de seu irmão a tinha recebido bem e como os sobrinhos pequenos se jogavam aos seus pés querendo vê-la fazer mágica, mas isso não explicava a convicção dela, anunciada a algumas semanas, de permanecer na escola no feriado de natal.
A visão daquele canto da mesa provavelmente podia dar uma boa idéia do contraste entre nós.
Lílian tinha o uniforme meticulosamente arrumado, a gravata com um nó impecável e os cabelos vermelhos presos num rabo-de-cavalo no alto da cabeça. Os sapatos tipo boneca com meias cumpridas até a canela e o distintivo de monitora chefe brilhando no peito, abaixo do brasão do paletó. Depois de revirar toda a seção de notícias do Profeta diário, ela simplesmente passou às suas anotações para uma revisão de última hora. Era o tipo de pessoa que podia passar um dia inteiro com uma mancha de tinta no rosto porque quase nunca se detinha diante de um espelho.
Eu estava usando naquela manhã os cabelos soltos, espalhados sobre os ombros, da maneira que Andy dizia que fazia parecer um véu negro. Vestia uma saia provavelmente um pouco mais curta que o normal, gravata folgada, com botas brilhantes. Tinha desviado minha atenção dos pensamentos nostálgicos e agora me preocupava em revirar a mochila à procura de um baton, ainda praguejando contra a pressa das outras em deixar o dormitório, sem me dar nem tempo de passar nada no rosto.
Aine ria e acenava para os que passavam, comendo o que talvez fosse seu terceiro café-da-manhã. Parecia muito pequena dentro da capa de inverno do uniforme. Em pouco mais de seis anos em Hogwarts, minha amiga pouco crescera, preservando as feições infantis, com bochechas rosadas e cabelos castanhos, encaracolados, cortados rente aos ombros estreitos, naquele momentos presos com uma fita cor-de-rosa. Uma menina graciosa, ficava literalmente uma boneca quando eu me dispunha a maquiá-la, o que sempre acontecia várias vezes durante os feriados.
Andy se preocupava com a leitura de um semanário de fofocas, balançando os pés em tênis desbotados por baixo da mesa. Tinha os longos cabelos loiros bagunçados e usava um velho suéter de lã vermelho por cima das vestes, o que lhe dava uma aparência um tanto quanto descuidada. Seu malão estava lotado de roupas caras e sofisticadas, mas ela preferia usar apenas suas velhas roupas, pelo menos enquanto servissem.
Nossas personalidades tão distintas se reuniam de uma maneira um tanto quanto misteriosa às amizades comuns. Aine era, em grande parte, a responsável por isso. Andrômeda fora sua primeira protetora e eu e Lílian acabamos por nos juntar às duas para evitar que outros estudantes as importunassem. Essa união havia se intensificado à medida que a guerra no mundo mágico ia nos sitiando no meio de um mar de depressão. Primeiro tinha sido a morte da minha mãe, depois as brigas de Andrômeda com o resto da família, e então Aine havia ficado órfã.
Esse último incidente fora o responsável pelo início das crises de Aine, que Lílian descrevia como "fuga da dor" ou "tentativa de perder o contato com a realidade". Eu e Andrômeda concordávamos que Aine estava era ficando maluca, mas não queríamos dizer isso e aceitamos a explicação de Lílian.
Mas, mesmo que houvesse fatos mal-explicados entre nós e mesmo sendo extremamente diferentes, nos sentíamos, de algum modo, seguras juntas, cada uma acrescentando o que pudesse faltar às outras. Sempre dispostas a se proteger mutuamente, sempre unidas, embora nada em comum nos fizesse assim.
Comentários (0)
Não há comentários. Seja o primeiro!