Pesadelos Noturnos
Era necessário admitir: o Virgilius agira bem diferente do que estava esperando. Refletiu Arthur deitado na enfermaria, onde fora obrigado a passar a noite.
Só estava em Palas a pouco mais que 24 horas e já estava enterrado na enfermaria. E o que seus colegas de classe não deveriam estar pensando? De verdade, Arthur preferia saber o que ele estava pensando.
Nunca fora de desmaios, ou de ter alucinações, e agora, no entanto, desde que pisara na ilha era como se estivesse cercado de Espectros do Mal – disse a si mesmo mentalmente da onde diabos deveria ter tirado esse termo.
Arthur mirou o teto rústico chateado. Gostaria muito de conseguir passar um só dia sem passar por ridículo. Achou que não precisaria de Blackheart para permanecer com o título de “Sr. Coitado”.
A chuva que começava a cair agora, fez a janela estremecer. Ficou reparando nos pingos enquanto via os contornos das árvores se contorcendo lá fora e ouvindo o som das ondas arrebentando contra a ilha.
Perguntou-se se o Báltico ainda estaria parado ali.
Se sim, talvez o diretor disse que ele teria de ir embora. É. Era um idéia. Afinal ele não estava indo bem, nas aulas que tivera antes de História da Magia ficou entre os piores da turma em truques, ou lições, não importa, que os professores passaram a fim de teste do que eles eram, por talento, capazes de fazer.
Não que alguém tenha feito muita coisa. A tirar pela garota que ele conversara no Báltico, Liana era o seu nome, pelo que Arthur se lembrava. Ela não fora excepcional, mas fora melhor que Thiago, que vem de uma longa linhagem de bruxos. Pelo menos ela conseguiu fazer uma pilha de livros incha em chamas.
Arthur suspeitava que ela teria feito melhor se não tivesse utilizado o feitiço de levitar para atear o fogo.
Em sua infelicidade Arthur finalmente adormeceu. Tivera receio de adormecer não queria mais ter aqueles pesadelos. De certa forma aviam sido tão reais.
Para sua sorte finalmente teve um sono tranqüilo.
Acordou logo que os primeiros raios de sol entram pela janela. A chuva também parecia ter se dissipado. As nuvens que chegaram, incompreensivelmente, no dia em que chegara a ilha, estavam se afastando. Embora não o suficiente para deixar o céu limpo.
Esperou a enfermeira aparecer e logo na primeira chance pergunto se já podia ir.
A enfermeira, Sra. Johnson, olhou com desagrado para ele. Verificou seu aspecto e murmurou de leve, quase chateada.
- Ah, pode ir. – balançava a cabeça negativamente. Fazia Arthur parecer um desleixado apressado. – acho que foi apenas uma Tontura Alucinótica Passageira, entretanto nunca vira ninguém antes do quinto ano sofrer disso...
Arthur não tinha plena certeza se compreendera a mulher. De toda forma saiu as pressas da enfermaria (isso é uma ala hospitalar, garoto!) sem dar atenção ao berro da Sra. Johnson. Faltava quase uma hora para o café da manhã, não sabia para onde ir, ainda não conhecia muito bem a escola.
Decidiu que era mais propicio retornar aos dormitórios, deitar-se lá e depois ir com Thiago para o Salão Principal.
A caminho do dormitório tomou um baita susto quando um quadro lhe chamou. Teria gritado se já não tivesse visto uma coisa assim no Postal.
- Hei, você não é o tal moleque de sangue contraditório que carrega o nome do nobre fundador? – perguntou o quadro confuso.
Arthur reparou que ele parecia ter acabado de acordar. Tentou pensar se isso era possível.
Para um quadro que fala, sim, disse a si mesmo.
- Sangue o quê? – Arthur tinha a ligeira impressão de que não gostara de como o quadro se referira a ele.
- C-o-n-t-r-a-d-i-t-ó-r-i-o, sangue-sujo em outros termos, Mor... tense...! – pigarreou o quadro como se Arthur fosse um jumento ignorante.
Arthur abriu a boca para dizer um palavrão ao quadro, mas o mesmo o interrompeu.
- É incrível como um nome tão importante veio parar numa pessoa de nível tão baixo...
Arthur mais uma vez fez menção de dizer algo e outra vez foi interrompido. Dessa vez por alguém que reconheceu como Belforth, o diretor.
- Dielog, já disse para não importunar os alunos. – disse Belforth cordial.
- Não estava o importunando! – defendeu-se Dielog. – disse apenas o que ele é. Um sangue-ruim!
E com isso sumiu de sua moldura.
Belforth pareceu achar graça, pois estava rindo. Arthur não via graça nenhuma, desde que tomara consciência do que é um sangue-ruim sentia-se enfurecido apenas com a mera lembrança do que eles queriam com isso.
Queriam lembraram.
Sim, é o que sempre fizeram.
Lembrar que Arthur Mortense não é nada mais que um ratinho, que nunca deveria ter saído de seu Cafofo, o ninho de rato – Ninho do Arthur.
Tentou disfarçar, mas sua pele avermelhou de ódio. Belforth o encarou, e parecia ter notado o que se passava já que comentou:
- Ah, Dielog, se ele soubesse, e acredito que saiba, que os maiores bruxos de nossos tempos são mestiços – riu acrescentando. – sangues contraditórios como costuma dizer...
Arthur sorriu. Belforth pelo menos conseguira anima-lo.
- Melhor, Arthur? – perguntou o diretor de repente. – soube de seu pequeno “acidente” em História da Magia, ontem.
- Sim, acho que tive uma... – forçou os miolos para se lembrar do que a enfermeira dissera. – Tontura Alucinóia Congênita... ou algo assim...
Belforth riu.
- Compreendo. – disse fracamente. Arthur tinha a impressão de que o diretor realmente precisava de uma noite na enfermaria. – bem, tenho que ir agora, Arthur, nos vemos no café – disse ao sair.
- Ta! – concluiu Arthur seguindo para o dormitório.
Faltava menos que 20 minutos para o café quando chegou ao dormitório. Pelo menos não teria que esperar muito. Entrou no quarto dos primeiranistas e todos ainda estavam adormecidos, ou quase todos, já que alguns, muito poucos, beliches estavam vazios.
Deviam estar no banheiro se arrumando, deduziu.
Foi se jogar na sua cama para esperar os outros despertarem quando viu um dos alunos se contorcer no chão. Arrastava-se com muita dificuldade rumo a um dos alunos que dormia profundamente.
Arthur gelou quando viu que o garoto carregava uma faca numa das mãos. Paralisou pensando no que fazer. Pegou a varinha e mirou para o desconhecido no chão a espera de uma luz.
Tentou se lembrar de como Liana ateara fogo nos livros, acidentalmente, na aula de feitiços. Pensou que se caso lembrasse seria certo tacar fogo no garoto que se arrastava para atacar o outro que estava mais adiante.
O garoto não chão se ergueu, firmou a faca, estava preparado.
Caiu.
A faca voou pelo quarto, enquanto o garoto já desarmado se chocava com o que dormia até então, e que teria ferido, até mesmo matado, se Arthur não o tivesse atingido – sabe-se lá com o que – na hora certa.
Arthur correu para ele, tirou o de cima do colega e tomou um baita susto ao reconhece-lo.
Era Vítor Menezes.
Arthur o puxou de cima do outro garoto que por sorte não acordou. Abriu os olhos desorientado, fitou Arthur e Vítor, e dormiu de novo. Deveria estar muito cansado.
- O que você está fazendo? – perguntou Arthur continuando a arrastar Vítor mais para longe.
- O... quê? – Vítor bocejou parecia ter acabado de acordar de um sono muito profundo. – onde eu tô? Que está acontecendo... Arthur?
- Você é louco... ia matar aquele garoto.
- Quê?
Vítor parecia completamente confuso com que Arthur falava. Parecia não ter idéia do que fazia há segundos atrás. Mas...
- Sangue queee nos UNI! – berrou Vítor sem mais nem menos. Logo em seguida voltou a expressar a cara confusa de antes.
Arthur notou que alguns colegas se remexiam para levantar. O que diriam se vissem Vítor ali? Fora do quarto do 2º ano? Arrastou o colega para fora do quarto com certa dificuldade devido ao seu peso exuberante.
E sem contar que o corpo magricela e não muito bem nutrido de Arthur não era dos mais fortes.
Levou o estranho Vítor para o banheiro e o levou para um dos chuveiros – havia dezenas de repartições formando pequenos cubículos onde os estudantes se lavavam todos os dias. Atirou o garoto de qualquer maneira e girou a válvula de aço.
O jato forte da água fria finalmente despertou o segundanista. Ele olhou chocado para todas as direções, seu olhar demonstrava total surpresa por despertar no banheiro sobre um jato de água congelante.
Apanhou seus óculos grandes e inertes que haviam caído e fitou Arthur com descontentamento.
- O que foi isso? – perguntou meio que irritado. – o que faço aqui?
Arthur o encarou por um momento antes dizer algo.
- Não se lembra do que estava fazendo há pouco? – disse por fim quase num murmúrio.
- Só me lembro de acordar aqui... – respondeu o garoto confuso. – estava tendo um sonho esquisito... sonhei que um monstro com escamas e garras me atacava... que eu me defendia com uma faca... vozes...
- Não se lembra de ter tentado matar um garoto agora a pouco? – perguntou Arthur sem enrolação.
- EU?
Vítor parecia achar que Arthur era louco ou coisa pior. O olhava com aspereza.
- Do que você está falando? – rugiu se levantando. – eu nun...
- Você estava há um minuto atrás preste a furar o garoto com um faca! – cortou Arthur. – eu vi... eu te impedi...
- Eu... não... – tentou encontrar palavras. – onde está a faca então?
- Voou pelo quarto quando tirei ela da sua mão com isto. – ergueu a varinha.
O segundanista tornou a abrir a boca, Arthur pensou que fosse mais uma vez tentar irrevogavelmente negar o que quase acabara de fazer, mas, no entanto, ele tornou a se calar. Saiu do boxe pingando água por todos os lados. Tinha uma grande expressão febril.
- Meu sonho pareceu real. – almejou se afastando de Arthur em direção ao lavabo. – Era real... eu... Cheguei mesmo a atacar alguém?
- Quase. – Arthur observava o garoto receoso. E se o atacasse de repente? – estava voltando da enfermaria e vi você lá então, sabe... usei a varinha. – encarou a coisa erguida no seu punho. – e nem sei que feitiço ou sei-lá-o-quê eu fiz...
Vítor parecia não notar mais o que Arthur dizia. Encarava sua própria imagem no espelho acima dos lavabos. Alisou os cabelos e o rosto delicadamente e como se fosse uma múmia foi retornando para a porta do banheiro. Lentamente.
- Aonde você vai? – disse Arthur rapidamente.
Sem dizer qualquer coisa o segundanista saiu do banheiro na mesma marcha lerda, sem ânimo. Arthur correu ao seu encalço eu o viu entrar no quarto dos segundanistas. Segui-o. Vítor atravessou o quarto escuro e se jogou num beliche, que Arthur deduziu, deveria ser sua cama. Apagou na mesma hora, e pela respiração elevada e o rosto cansado, parecia não dormir a séculos.
Posso deixa-lo aqui?, se perguntou Arthur.
Vítor não parecia que se levantaria até o dia seguinte e com tudo os alunos estavam acordando. Não teria como explicar porque estava com a varinha erguida estacionado no meio do quarto do segundo ano. Saiu as pressas e se deparou, indesejavelmente, com Felipe Blackheart.
- Ora, ora, ora. – disse o rapaz ao vê-lo. – estava dando uns beijinhos de bom-dia no seu namorado, merdinha?
- Olha eu... – Arthur tentara não demonstrar que estava com medo. Infelizmente a surpresa desse encontro estampara o terror em seu rosto. – não quero brigar com você... de verdade!
- Não ia querer brigar comigo também, Arthur... de verdade. – acrescentou Blackheart. – é esse o seu nome, Arthur, Não é? Arthur Mortense.
- Hum... é.
- Hum, é... – repetiu o terceirianista, fazendo uma imitação boba de Arthur. – você fala como a merdinha que você é!
Felipe baixou seus olhos para o esquelético garoto a sua frente. Pela sua cara parecia que estava vendo um monte fedido de estrume. Desdenhou os lábios e sacudiu a cabeça.
- Verdadeiramente é horrível saber que alguém do seu... tipo, tem um nome como Mortense. – confessou malevolamente. – principalmente vindo de uma família de trouxas. Não sabia que existia esse nome no seu nível de gente...
Agarrou a gola das vestes escolares de Arthur.
- E preferia não saber. – acrescentou jogando o garoto contra a parede.
Pelo barulho oco que se seguiu parecia que Arthur quebrara algum osso, o que logo descobriria não ser verdade. Tentou se levantar mais nesse instante sentiu o pé de Blackheart acertar o seu peito. E de novo. Depois no estômago. Na bacia e...
... parou sorrindo.
- Só te dei essa lição com luta de trouxa porque é sua primeira semana aqui. – disse o rapaz altivo. Balançou sua varinha perto do imóvel Arthur. – mais te machucarei muito com isto na próxima vez seu... sujo. É, sujo.
E se retirou.
Ao longe Arthur ouviu o murmurar “Mortense! Francamente... onde fomos parar” e logo cair nas gargalhadas.
Sentindo-se moído, com o corpo em frangalhos, Arthur se levantou ao ouvir os passos de seus colegas. Levantou rapidamente e se enfurnou no banheiro de novo, como se tivesse ido para lá ocasionalmente depois de uma noite de sono.
Os garotos, de todas as idades, começaram a entrar e sair sem dar importância a Arthur. Logo Thiago apareceu, e ao ver o garoto se dirigiu a ele preocupado.
- E ai cara? Tudo bem? – disse entrando num dos cubículos para tomar uma ducha.
- Tudo. – mentiu Arthur.
Dez minutos depois os dois estavam atravessando os grandes corredores e adentrando no Salão Principal. Se sentaram na mesa da esquerda hoje, pois a que costumavam sentar estava cheia. Hoje, algo ainda inédito para Arthur e os primeiranistas aconteceu.
Pombas emergiram das janelas abertas, deslizando pelo salão e entregando encomendas para os alunos. Uma pomba amarela, com as pontas das asas alaranjadas, desceu na segunda mesa num rasante e pousou a frente de Thiago e Arthur com um envelope.
Thiago correu os olhos desgostoso.
- Minha mãe. – disse ao terminar de ler. – mandou uma pilha de recomendações e um saquinho de... – Soprou os cabelos lisos que caiam sobre seus olhos. – de Jujubas Pula-Pula.
- Jujubas Pula-Pula? –
- Ah, claro. – Thiago se recordara que Arthur era um “Nascido Trouxa”. – são balinhas coloridas que ficam saltitando na boca.
Arthur notara que o saquinho que chegara no envelope de Thiago vibrava preguiçoso pra lá e pra cá. O garoto abriu a embalagem e lhe ofereceu algumas. Era engraçado o efeito que elas faziam. Desciam pela garganta fazendo o esôfago vibrar. E só paravam de pular depois de um certo tempo no estômago.
Depois de tomarem café os garotos saíram para a aula de Ocultismo. Thiago mencionara que tinha uma certa curiosidade nesta matéria que dava uma visão sobre Artes das Trevas, embora o programa fosse desenvolvido para ensinar os alunos a se defender dela.
O professor de Ocultismo, Ludovico Gybrael, era um homem velho, ainda mais velho que o diretor ao que aparecia. Tinha um nariz de gancho carrancudo, seus cabelos brancos eram ralos e crespos caídos por trás da orelha para que seus olhos – um risco malicioso e de poucos amigos – ficasse bem a vista.
A aula com Gybrael correra bem até que Arthur e Thiago tiveram de servir de “voluntários” involuntariamente por estarem conversando ao invés de prestarem atenção no feitiço para se livrar de pragas mágicas do nível I – “I” vinha do termo “Insignificante” segundo Thiago, porem Arthur tinha suas duvidas.
Depois de quase se matarem ao tentarem se livrar diante da turma das Moscas de Três Cabeças e Antenas Carcomidas Africanas, os dois amigos acabaram por serem dispensados para os seus lugares sobre muitas risadas.
Arthur viu Liana rindo, embora ela tentasse disfarçar.
Na saída da aula de Ocultismo, enquanto Thiago tentava dizer alguma coisa a Arthur sobre Quadribol (o que ele ainda nem tinha idéia do que se tratava), Liana foi falar com eles – na verdade, com Arthur.
- Oi. – disse ela sorrindo.
Thiago, que não notara na garota antes pois a havia visto muito vagamente nas aulas, se surpreendeu.
- Oi. – disse ele em resposta com um sorriso, no mínimo, boboca.
- Oi, Arthur. – disse Liana como que para cortar Thiago.
- Olá... Liana.
A garota parecia um pouco envergonhada.
- Bem eu só vim aqui para entregar essas lições extras que o Profº esquecera dês-lhe entregar e... ela parou sem completar a frase e forçou um sorrisinho.
Arthur e Thiago pegaram seus deveres extras.
- Então... é isso. – disse ela se afastando. Lançou um último olhar para Thiago e disse: - Prazer em conhece-lo!
- Prazer... – respondeu Thiago baixinho observando a garota se afastar.
Os dois colegas não tiveram uma tarde fácil. Haviam conseguido deveres extras em três matérias. E no jantar desse dia havia um clima de enterro sobre os alunos do primeiro ano, amanhã eles teriam sua primeira aula no CBCV, com o Virgilius.
- Pra dizer a verdade eu gostei do Virgilius. – comentou Arthur ao ver o desanimo do amigo. – não sei porque as pessoas o acham assim tão... mal...
Thiago não respondeu.
Com o clima baixo-astral logo todos adormeceram. Arthur provavelmente foi o último a dormir, ao se deitar seus pensamentos recaíram sobre Blackheart. Se sentia tão humilhado com o que acontecera de manhã, tão sujo, como ele citara. Não disse nada a Thiago pois se envergonhava muitíssimo da surra que levara calado.
Adormeceu com o último vestígio de rancor e ódio. Seus pensamentos se apagaram com um desejo ardente, quase uma necessidade assim como respirar de se vingar, se vingar de Felipe Blackheart. O puro-sangue limpo.
Arthur nem sabia explicar porque o fato de Blackheart se puro-sangue veio a sua cabeça e porque o enfurecia. Só sabia que tinha ódio disso. Era como se esse fato anulasse suas chances de vence-lo.
Como se uma voz dissesse: “Você é apenas um mestiço sujo e intrometido, não pode se meter com puros-sangues”.
Mordeu os lábios enquanto dormia imaginando como seria derrubar Blackheart e afligir de dor cada ponto de seu corpo. Como seria pisar na sua cabeça e faze-la estalar conforme o sangue escorria mais e mais rápido.
Lembrou-se de ter visto (com o desagrado de Thiago) uma cena de beijo entre Blackheart e Ana Rivers – Ana era realmente linda. Seus cabelos lisos e dourados caiam sobre seus olhos azuis e sobre seus lábios pequenos e suaves. Lábios que aquele verme (Isso, verme, pensou Arthur) a beijava. Colocava sua boca na dela.
Mesmo dormindo Arthur socava seu travesseiro, pensando ser Blackheart é claro.
A inveja, o ódio, a fúria, a obsessão queimava cada parte do garoto. Não suportava a idéia de Blackheart está sempre por cima, sempre superior a ele (sangue-puro!), sempre vencendo-º Compreendia o que Vítor sentia agora.
Vítor!
Havia se esquecido dele completamente desde essa manhã. Ele tentara atacar um garoto, e havia uma faca ao que parece. Não havia mencionado nada com ninguém, mas talvez conversasse com o segundanista pela manhã, já que não o vira hoje.
A lembrança do que vira no quarto pela manhã se esvaia cada vez mais de sua mente. Quanto mais pensava nela menos lembrava. Logo emplacara num sono tranqüilo sem ter a menor lembrança de Vítor com uma faca preste a matar um aluno adormecido.
(P-u-ro-s-a-n-g-u-e)
As palavras mesmo no mais completo sono pareciam ecoar na mete vazia de Arthur. Já havia adormecido a muito tempo, muito mesmo até que finalmente se encontrou mais uma vez num sonho real.
Não havia monstros, por enquanto. E não estava em Palas. Estava num monte alto na noite mais escura que já vira. A grama abaixo de seus pés era apenas um campo de cinzas. Havia ossos espalhados por todos os lados, enfeitados em árvores mortas.
Um rio de águas turvas e sombrias corria entre o pomar de árvores e ossos. Arthur sentiu muito medo da água, mas sentiu o desejo de tocá-la. Resistiu e, contudo foi incontrolável. Pouco depois marchava para o rio contra sua própria vontade e razão.
Próximo à margem sentiu coisas moles estourarem com seus pés. Era frutos podres, tomates ao que pareciam. O cheiro que exalava dos frutos era mais horrível que o pior cheiro que Arthur já vira na vida. Era pútrido como uma pessoa morta.
(Os Frutos da Dor... Sementes do Mal)
A voz, a mesma voz que o assustava o fazia seguir para o rio. Tinha algo lá, algo por que arriscar. Se ao menos soubesse...
Seus dedos finos tocaram as águas sombrias. Eram frias, mas não gelavam seu corpo. Gelavam sua alma, pensou.
E seu coração.
Caminhou para dentro das águas e a atravessou caminhando até a outra margem. Na parte mais funda do rio ficou coberto até os ombros. O céu sem estrela com apenas o círculo branco e fatal da lua incandescia de trovões e de fumaça avermelhada de um vulcão distante.
Ao sair do rio Arthur se sentia diferente. Sentia-se forte. Sentia-se capaz derrotar quem fosse – até Blackheart. De tomar-lhe a garota, não por amor, mais por vingança. Queria ter tudo o que ele tinha, pois ele tinha tudo: o dinheiro, a força, a garota mais bonita de Palas e o Sangue!
O sangue que Arthur conseguira agora. O rio o purificara, era tão puro como Blackheart, e tão capaz e merecedor de ter tudo quanto ele tinha. Não era mais sujo. Fora lavado pelo rio, limpo, livre de todas as impurezas do sangue trouxa – sangue-ruim.
Da margem olhou para as águas escuras e viu seu rosto. Passou-se um tempo e já não o era mais. Era o rosto Dele, de Blackheart. Os olhos azuis do rapaz olhavam para ele e debochavam.
“Sujo, sangue-ruim... este rio nunca limpara sua carcaça inútil... nunca será como eu... nunca terá uma pura (Sangue-puro!) como Ana. Nunca. Jamais”
Arthur acertou um soco nas águas e o rosto de Blackheart desapareceu.
O garoto se afastou entorpecido.
Ele mentira, disse a si, estava limpo agora. Era de puro-sangue. Não era um mero mestiço que era há pouco. Poderia ter alguém como Ana. Podia ter Ana.
Foi quando sua mente clareou.
“Ana...”
Sim, era vingança que precisava, a prova que precisava. Nada derrubaria mais Blackheart, nem um soco e toda dor do mundo, do que perder aquela beleza (Sangue-puro) para ele. Mostraria qual era o seu nível.
O nível de Arthur Mortense.
Sua raiva logo se inflou no mais profundo desejo de ter Ana, de beijá-la. De roba-la de Blackheart.
Gargalhou embaixo de uma chuva forte de sangue.
(Sangue-puro)
Possuído pela sua alegria, Arthur acordou com os gritos vindo de fora do quarto do primeiro ano, um algum lugar bem próximo. Pela distância e direção pareceu vir do dormitório feminino. Todos acordaram assustados e correram para fora dos quartos.
Arthur saiu de sua cama sem lembrar direito com o que sonhara, a não ser que era algo terrível. Ouvia apenas um murmúrio de “‘angue que uni” no fundo de seus tímpanos.
Correu com seus colegas na direção dos gritos. Alguns professores passaram por eles e os mandaram ficar onde estavam. As garotas começaram a sair aos choros dos seus quartos encontrando o grupo de garotos no fim do dormitório.
Entre elas Arthur reconheceu Liana Almeida e Ana Rivers.
Ana, Arthur pensou sem ao menos saber porque, Minha Ana.
Se sentiu um louco por dizer isso mentalmente. Afinal o que estava dizendo. Ela...
- MORTA! – berrava uma das garotas. – MORTA DO MEU LADO. – mostrou a mão esquerda que estava coberta de sangue. – Ela queria que eu a socorresse... eu... – a garota caiu inesperadamente e as garotas e alguns garotos a ampararam.
Arthur sentiu uma dor em seu peito. Por que se sentia culpado pela morte da quintanista?
E por que razão ele achava (sabia) que fora uma quintanista?
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