Mirtilo
Mirtilos
- Deseja mais alguma coisa senhorita?
- Não, pode se retirar. – respondi ao elfo que levou minhas bagagens até meu quarto.
Era verão, mas o meu quarto estava gelado. Tão frio que me deitei vestida, tal qual estava, e puxei um grosso cobertor perolado que cobria minha cama. Melhorou, mas não muito. Meus pés continuavam congelados sobre os sapatos e as meias, tire-os e prendi o cobertor sobre eles.
Como que tomada por uma letargia fechei os olhos sonolenta, mas tornei a abri-los segundos antes de pegar no sono. E mais uma, e outra, e outra. Desisti por fim decidida a permanecer olhando para o dossel da cama.
E eu estava com sono, muito sono. Mas não conseguia dormir. Qualquer estralo, assovio dos pássaros, passos no andar de baixo, qualquer coisa fazia com que meus olhos abrissem e não quererem se fechar.
Finalmente escutei aquelas três batidinhas na porta características de Narcisa.
- O que está fazendo deitada a essa hora?
- Cansada. – respondi ainda com os olhos voltados para cima.
- Cansada de quê? – perguntou abaixando a voz cada vez que chegava mais perto.
Os passinhos curtos, leves e graciosos, exatamente como quando criança. Ela era mesmo uma boneca, Narcisa. Sempre atenciosa e preocupada. Parecia nem ser minha irmã, ou irmã da mais velha. A Bella do gênio difícil e a estranha Andrômeda, que se cansava sem fazer nada. Ou por fazer nada. Ou simplesmente por estar em casa.
- Não sei. – e senti minha voz em um fio fino. Não que fosse minha intenção, mas não sentia vontade de falar, e não sentia vontade de explicar.
- Vamos, deixe disso Andrômeda. Precisamos nos arrumar! Rodolfo marcou um jantar importante. É hoje!
Aquela voz com um ligeiro toque de alívio estridente suspirou-me. Meu cérebro parecia trabalhar em uma rotação lenta. Rodolfo, Bellatrix, jantar importante. Levantei-me quase que imediatamente.
- Tem certeza? Quer dizer, poderia ser qualquer outra coisa...
- Ora Andrômeda, não fale assim. Não pode ser outra coisa, ele tem que pedir Bellatrix em casamento. Já deveria ter pedido! Você sabe disso, ou deveria saber... – respondeu alarmada torcendo os dedos nervosamente.
- Não seja boba, Cisa. Bellatrix pode arrumar coisa melhor que um Lestrange pomposo. – disse levantando-me da cama lentamente e me dirigindo ao guarda-roupa.
Mesmo de costas, escutava sua respiração acelerada, poderia adivinhar seus olhinhos mexendo de um lado para o outro, simplificando uma explicação. Como uma mãe usa termos mais simples, apesar de ambíguos, para que seu filho entenda o que precisa sem que a obrigue a tocar em certos assuntos.
- Andrômeda, por Deus, Bellatrix precisa casar com Rodolfo Lestrange...
- Pois não me agrada ter aquela família unida à nossa. – e escolhi um vestido qualquer do cabide e levei-o até a cama.
- Não seja estúpida. Bellatrix não é como nós, tem que ser Rodolfo!
Fitei-a sentar-se embaraçada em uma cadeira e sobrepor seu rosto às sombras.
- Ela é jovem. Bonita...
- Ela não é pura! – cortou-me com os olhos aborrecidos.
Eu segurava um colar de pérolas e no momento em que a encarei pelo espelho senti que perdia a sensibilidade dos dedos e deixei o colar cair no chão.
- Como você sabe? Ela te disse?
- Eu só sei. É claro que ela não me diria...
Bellatrix sabia que não poderia... Ela simplesmente não podia. A honra e a glória dela. Da família. Tudo o que escutava ela dizer anos a fio, sobre respeitar os desígnios, as tradições que eram impostas por séculos. Tudo o que tornava nosso sangue puro e imaculado. Era o que nos tornava diferentes das outras famílias, não?
Narcisa disse que foi um deslize, que ela havia sido seduzida e qualquer outra coisa do tipo, mas eu conhecia Bellatrix bem demais para acreditar na sua inocência. Sabia que tudo estava dentro dos seus planos, ela sempre gostou de Rodolfo, apenas arrumou uma maneira de prendê-lo definitivamente.
Provavelmente só demorou um pouco mais do que imaginava...
Minutos mais tarde Cisa trouxe o vestido que eu deveria usar, não o que queria, naturalmente.
Enquanto me arrumava um pensamento, entre tantos, fixou-se de maneira quase que real. Evan Rosier. Eu não gostava dele, mas papai queria. Fazia gosto. E o que Cygnus Black faz gosto tem o hábito de acontecer, como que por mágica.
- Não se preocupe, até o casamento de Bella você não pode assumir nenhum compromisso sério. Não é de bom tom... – disse Cisa enquanto penteava meus cabelos. – Mas eventualmente... Sabe, ele não é de todo mal, quer dizer, sei que você nunca gostou muito do jeito dele...
- Nunca gostei nada do jeito dele.
- Que seja, mas ele é uma pessoa de boa família... – e falou por horas, ou o que me pareceram horas.
Vinte para as oito e estávamos todos a postos na sala de estar ao lado da sala de jantar quando soa a campainha. Papai que estava em sua poltrona fez sinal para o elfo abrir a porta, mas não poderiam ser eles. Os Lestrange costumavam ser muito pontuais.
De fato. Não era.
Irma Black chegava com seu jeito tão altivo e elevado quanto nunca antes vira. Seus lábios pintados do costumeiro bordô festivo e uma expressão que era quase de desagrado.
Ladeada de marido, filha, genro e netos.
Sirius, com um ar de que havia sido obrigado a colocar uma gravata borboleta, sorriu cansado quando me viu.
Ela mandou que nos levantássemos. Nós três.
- Esta? – perguntou ela apontando o dedo para Bella, que não gostou de ser tratada com tal desconsideração, ao que mamãe acenou com a cabeça. – Bellatrix, foi você quem escolheu este vestido?
Ela fez que não com a cabeça. E nós duas também quando foi a vez de dirigir-se a Narcisa e a mim. Bufou impaciente duas ou três vezes antes de dirigir-se à mamãe, que conservava um ar de dignidade fingida, pois pela sua expressão sabia o que viria a seguir.
Os homens se retiraram quando viram o que estava para acontecer, deixando nós (as mulheres da família) a sós.
- Druella, quantas vezes vou precisar dizer que a mais velha não deve usar essa maldita cor! – falou a voz carregada apontado para Bella – Vamos Bellatrix, lá em cima está um vestido lilás. Não gosto quando usa vermelho, parece que brota sangue dos seus poros. A do meio... Andrômeda. Deve usar verde, e não esse cor-de-rosa ridículo. Parece uma camisola. Narcisa, a próxima vez que a vir vestindo azul vou quebrar sua varinha. Não me interessa se você quer realçar seus olhos... Agora faça alguma coisa útil, minha nora, e troque a roupa dessas meninas enquanto eu coloco essa maldita casa nos eixos nesses poucos minutos que tenho.
Vi o lábio inferior de mamãe tremer e seus olhos umedecessem de raiva e infâmia, enquanto ela nos acompanhava até seu quarto.
Em cinco minutos estávamos de volta, exatamente como nossa avó queria. Obra de Druella quando ficava nervosa, agitava a varinha com tanta rapidez quanto necessário.
Ela não murmurou nem uma palavra quando voltamos à sala de jantar e viu seus cristais preciosos substituídos por porcelana chinesa. Tia Walburga olhava a tudo com um ar de indiferença latente.
- Não sei o que deu nela hoje, acho que acordou com vontade de ofender os outros... – resmungou Sirius ao meu lado quando voltamos a nos sentar.
- Onde está o Mestre dos Magos?
Em resposta, Sirius deu de ombros e revirou os olhos. E com um súbito estrondo a lareira encheu-se de chamas esverdeadas e Tio Alfardo surgiu. Respirei mais aliviada, o que quer que nossa avó tentasse contra mamãe provavelmente seria contido por Tio Alfardo
Com um sorriso contido cumprimentou a todos, mas não teve tempo de sentar-se. Novamente a campainha, e dessa vez acompanhada pelo badalar do relógio.
Estava feito. Bellatrix estava oficialmente noiva de Rodolfo Lestrange e em dois dias todos estariam sabendo. Era só esperar pacientemente pelo jantar no “Magestic”, o restaurante onde todos os pedidos de casamento da alta sociedade eram feitos, e devidamente fotografados.
- Estou cansada... acho que vou me deitar. – menti. Não estava cansada, apenas tive uma noite longa demais para meu estômago.
Ao chegar no quarto, meti-me dentro de uma camisola qualquer e corri para os cobertores. Frio. Frio em pleno verão. Estava desperta, completamente acordada e sem o menor vestígio de sono.
Demorou até que adormecesse por completo, e quando senti-me envolta em uma espécie de áurea de sonolência fui arrebatada por qualquer coisa , e acordei novamente. E outra. E mais uma vez.
Talvez fosse algum pesadelo, mas não tinha tido tempo suficiente para saber. Vi o dia amanhecer da janela do meu quarto, acordei com a testa colada no vidro e os vestígios de um ensolarado dia.
A cabeça pesada, os olhos fundos e cansados e tremores involuntários nas mãos seguidos por um calafrio na espinha.
- Andrômeda? Por Deus, você dormiu na cadeira? – e a voz de Cisa fez com que finalmente enxergasse sua figura distorcida aos meus olhos.
Massageei a têmpora relaxando a expressão. Respondi qualquer coisa e ela segurou meu rosto por entre seus dedos preocupada. Não lembrava do que tinha falado, e se realmente havia falando algo coerente.
Sorri debilmente, acredito.
- Você está bem?
- Estou. – esforço descomunal para articular a palavra.
- Então deveria se aprontar e vir ao estábulo... – e senti apreensão e ansiedade nos seus gestos.
- O que houve?
- É Cetus...
Desci as escadas correndo e lutando com meus olhos contra a claridade, pulando a cada dois degraus ainda de sapatilhas e com o chambre aberto. Aos poucos avancei sobre os terrenos verdejantes que separavam a casa do estábulo, o orvalho já molhava a ponta dos meus pés, enquanto sentia aquela umidade subir até minhas canelas e os raios incandescentes da manhã perfurarem as mangas finas do chambre aberto fustigado pelo vento. A poucos metros do estábulo, vi Oliver resmungar sozinho e sair pisando duro ao enveredar por algum caminho.
E lá estava ela, Bellatrix Lestrange. Não, Bellatrix Black. Sacudi a cabeça sentindo alfinetadas incessantes na fronte.
- Bella? – perguntei timidamente passando pelo feno espalhado por todo o chão.
- Bom dia. – sua voz saiu falha e sem emoção. Seus olhos haviam perdido o brilho e se tornado ligeiramente foscos.
Ela abaixada passando a mão no focinho do animal, que era um misto de dor amargurada e penalizada. Cetus, seu imponente Graniano de olhos avermelhados e porte imperativo que não deixava ninguém montá-lo, deitado no chão com olhos pastosos e respiração fraca.
- Cisa me disse. Você vai deixar Oliver sacrificá-lo? – perguntei ao lado dela coma voz baixa, como que em se segredo.
Bella respirou fortemente duas vezes e fitou-me de esguelha.
- Não. – disse simplesmente.
Permaneci estática por alguns segundos, talvez fosse minha dor de cabeça, a sonolência, ou o ar da manhã que fizessem com que visse seus olhos escurecessem um quase nada.
- Oliver disse que ele não vai melhorar.
- Eu sei. – e tornou a passar a mão sobre sua crina, ora lustrosa.
- Então...
- Então ele vai morrer.
Passei a mão pelos meus cachos revoltosos e pousei a mão direita sobre meus olhos. Talvez Bellatrix não estivesse entendendo a amplitude da doença, era provável que ela não percebesse que não havia saída para Cetus, e a prorrogação da morte não traria nenhum beneficio.
- Bella...
- Bom dia Andrômeda. – cortou-me voltando seus olhos para o animal que respirava com dificuldade.
- Bellatrix!
- Tenha um bom dia Andrômeda. – repetiu friamente em tom de ordem.
Procurei seus olhos uma última vez antes de sair do estábulo, ela não desviou. Fitou-me debaixo ressabiada, esperando por qualquer outro apelo que faria.
E eu faria. Faria se soubesse que ela poderia mudar de opinião, mas ela não mudaria.
Os raios do sol incidiram sobre seus cabelos negros presos firmemente em um rabo-de-cavalo e dessa vez não era obra da minha mente confusa. Seus olhos escureceram. Próximo à íris já não tinham aquele brilho vivo metálico tão característico, eram de um azul mais profundo e escuro, como um túnel sombrio.
§*§*§
Patrulhar os andares de uma Hogwarts adormecida era a parte mais incomoda dos deveres da monitoria. Andar pelos corredores escuros, tendo como companhia retratos reclamões que resmungavam qualquer tipo de impropério toda vez que passava com a varinha em riste.
Geralmente as patrulhas eram feitas em duplas, mas no meu caso era preferível dividir o trajeto a compartilhar. Travers ficava dois andares abaixo dos meus, e a lógica funcionava com muita eficácia visto que nossa convivência era sempre forçosa e desagradável.
Uma maneira digna e diplomática de não entrar em conflito com o capitão do time de Quadribol.
Pertencer a uma casa como a Sonserina significa que era preciso, acima de tudo, desenvolver nossas relações da maneira mais inteligente possível. Não era tolerável e principalmente não condizia com a nobre educação da minha família. A família de Travers não era igualmente rica, influente ou pura quanto a minha, entretanto ele era sagaz e determinado. Simplesmente não seria de bom tom que eu me indispusesse com o monitor, batedor e líder do grupo de estudos da Sonserina.
- Black. – e tentei não arregalar os olhos de medo quando uma mão grande tocou gentilmente, embora um tanto desajeitada, meu ombro. Virei-me. – Abaixe a varinha, se eu ficar cego vou processar sua família.
- Tonks? Qual é o seu problema? – perguntei reprimindo um suspiro de alívio.
- Nenhum. Só achei que essa era uma boa hora de conversar. – e sorriu. Tinha algo no seu sorriso que me fazia querer gargalhar sempre que o via.
Conversar. Cruzei os braços adotando uma pose que talvez tenha visto Narcisa usar algumas vezes com algum dos seus inúmeros admiradores. Apontei o relógio no meu pulso que indicava 10:45 com ponteiros dourados.
Em quinze minutos terminaria meu turno e precisava voltar ao dormitório, Filch não deixaria a primeira semana de ninguém passar sem uma detenção.
- Bonitinho. – disse ele dando de ombros. – Olha, eu só queria saber como foram seus NOM’s.
- Eles foram... – Excede Expectativas. – Aceitáveis, de certo ponto de vista. Meu pai não ficou muito satisfeito.
Molhei os lábios nervosamente pela mentira, certamente ele ficaria se meus exames tivessem, de fato, sido somente ‘Aceitáveis’. E não era uma completa mentira, talvez um floreio da verdade. De certo ponto de vista nenhum ‘Excede Expectativas’ era satisfatório para os padrões da minha família. Fiz questão de esquecer meu ‘Ótimo’ em Runas Antigas, Astronomia, Feitiços e História da Magia.
- É, os meus também... – disse enfiando as mãos nos bolsos ao arquear as sobrancelhas forçosamente.
- Pensei que...
- Não, os reforços foram bons. Quer dizer, certamente eu teria ido muito mal se não tivéssemos estudado... Hun, você sabe... Juntos e acontece que eu estava meio... Muito nervoso. – sua voz era hesitante, nervosa e confusa como nunca antes vira.
Na falta de palavras acolhedoras, suspirei pesadamente na tentativa de demonstrar algum tipo de apoio.
- Vai desistir?
- De Transfiguração? – e por algum motivo ele sabia do que eu falava sem ao menos termos sequer citado a matéria. – Não, de jeito nenhum. – e a silhueta da sua cabeça negou veementemente quando voltamos a andar.
- Então...
- Então. – repetiu no mesmo tom, embora seus olhos parecessem estranhamente vidrados escutei seus dedos estralarem ainda metidos nos bolsos.
- Sabe, eu estava pensando... – e ele estancou de repente. Ignorando seu ‘quase-futuro-sorriso’voltei meus olhos para a barra da minha saia, apesar de manter o queixo naturalmente erguido a certa altura alinhada.
- Sim...
- No ano passado, quer dizer, minhas notas seriam piores se não tivessem sido os fins de semana também...
- Sei...
Naquele momento percebi que Ted Tonks monossilábico era extremamente constrangedor. Acredito que estávamos muito próximos ao relógio, porque o tic-tac era incessante e continuamente invadia, assim com o som dos sapatos contra a pedra bruta, meus pensamentos de que Tonks sabia do que eu estava falando, compartilhava dessa idéia, mas queria que eu falasse primeiro.
Logo o silêncio se tornou o mais incômodo que já tive na presença de alguém, o ranger dos meus dentes era inevitável ao que ele simplesmente respondia com sobrancelhas de forma pesarosa.
- Talvez se esse ano continuássemos a estudar... Ano que vem são os NIEM’s. – e continuei repetindo por vezes, as palavras: futuro, carreira profissional, Ministério da Magia embora eu soubesse muito bem que nenhuma delas faria parte da minha vida após Hogwarts.
Ele respondia com interjeições, coçadas na nuca, balanços de cabeça, estalos nos cotovelos e toda e qualquer articulação que desejasse.
Tomada de um nervoso que poucas vezes já havia sentido, cravei minhas unhas com força nas palmas das mãos na vã tentativa de controlar minha ansiedade.
-...e para conseguir um bom emprego... Tonks, eu estou falando com você!
- É. Por mim tudo bem...
Meus pés pesaram e uma sensação de alívio fez com que minhas mãos parassem de formigar. Em duas profundas respiradas senti minha fronte livre de qualquer pressão enquanto andávamos na direção do fim do corredor que desembocava em uma vista para os terrenos da escola.
- Você sabia, não? Que eu iria sugerir...
Ele respondeu rindo abertamente e jogando a cabeça para trás de uma maneira tão única que nunca antes havia visto ninguém fazer. E por um décimo de segundo pode ser que eu tivesse sentido o hálito, frutas silvestres.
Por uma estranhíssima razão senti a boca seca e uma vontade alucinante de comer mirtilos recém colhidos. E eu não era uma fã de mirtilos.
- Até mais, Andrômeda. – disse e dobrou em direção à torre da Corvinal.
Fins de semana e biscoitos e fadas e Poções e livros empoeirados. Estralar de dedos e respiração ruidosa.
Ted Tonks usava um perfume cítrico. Como se tivesse engarrafado todas as manhãs frias de terças-feiras da primavera, adicionando o aroma de grama orvalhada e hortelã pisoteada na calçada de pedra depois de uma chuva torrencial.
Não era tão difícil de identificar e, na verdade, depois de três meses estudando Poções ao seu lado tudo isso parecia extremamente simples.
Os seus olhos não eram absolutamente verdes, como eu antes imaginava. Prestando bem atenção eles eram de um verde musgo com pontinhos castanhos, e o mais interessante, em torno de sua íris se traçava um ziguezagueado amarelo de contorno castanho.
Não estaria mentido se dissesse que eram os olhos mais esquisitos e interessantes que já tive oportunidade de observar.
Lábios finos e sempre secos, tanto que ele costumava tirar a casquinha com as unhas quando ficara preocupado, e por vezes machucava-os até sangrarem. Tinha dedos grossos e mãos descuidadas, e até mesmo alguns calos que imaginei serem resultado do Quadribol.
Nada em Ted Tonks parecia ser delicado ou suave, seus traços eram bem marcados como se fosse esculpido pelas mãos de um artesão. Era uma surpresa que seus movimentos com a varinha sempre fossem tão certeiros e harmônicos, já quando estudávamos Poções minha teoria provava-se correta.
Ele não era tão cuidadoso ao cortar raízes, acrescentar ingredientes ou mexer o caldeirão.
- Não gosto de cozinhar – justificou um dia quando sua poção exalava um fedor absurdo de esterco de acromântula.
- Fazer poções não é cozinhar.
- Pra mim é.
E com um toque da varinha limpou o caldeirão e jogou-se na cadeira com os braços cruzados, cenho franzido e respirando pesadamente.
Era o que fazia quando ficava furioso consigo mesmo, e não havia muitas maneiras de demovê-lo desse estado. Com o tempo aprendi que era preciso ter cuidados extras para não lesar ainda mais o seu ego.
Ted, afinal, era homem. E por mais “moderno” que parecesse ainda conservava o velho orgulho entranhado no espírito, que ele fazia questão de não liberar, mas que em momentos como aquele era muito mais forte.
- Poderia ter dado ao Hagrid. Sabe, para adubo da plantação de abóboras. – e foi a primeira vez que o fiz rir.
- Você fez uma piada! Damas e cavalheiros, Andrômeda Black fez uma piada. – gritou fazendo alarde como se uma grande platéia fosse expectadora, e em seguida me puxou pelo braço e levou para fora da sala.
Foi estranho. Era uma quinta-feira fria de dezembro, mas ele não usava luvas. E quando tocou meu braço, o fez justamente em um lugar descoberto pela blusa de lã que eu usava.
Era a primeira vez que sentia o toque da sua mão, e era quente.
- Hei! Você! – disse parando um menininho que passava em frente à sala.
O garoto era pequeno, tinha os cabelos castanhos e estava carregado de livros, parecia um primeiranista e se assustou quando Ted o abordou abruptamente segurando seu braço também.
Ele parecia ter congelado uma expressão de terror no rosto enquanto olhava inquisitoriamente para mim.
- Você, diga o que essa moça está fazendo... Vamos, olhe pra cara dela e diga o que está fazendo. – o pequeno arregalou os olhos confuso e apavorado, soltando seu braço no minuto que pode e correndo desengonçado até dobrar o primeiro corredor que avistou.
Ted olhou-me sorrindo um sorriso simples, o que ele costumava fazer quando ficava sem jeito, e um dos seus melhores sorrisos. O principal, que sempre me fazia torcer os cantos dos lábios contrariada.
- Era pra ele dizer que você estava rindo. Sabe, pra dizer que isso não mata.
Ele provavelmente não se deu conta que segurava meu pulso descoberto durante mais de cinco minutos, e quando fitei sua mão ainda firme corei imediatamente e desvencilhei-me andando a passos largos para a sala.
Tirei a varinha das vestes e com um aceno todo o meu material arrumou-se dentro da mochila enquanto eu limpava o caldeirão.
- Andrômeda?
- É tarde, quer dizer, preciso ajudar Cisa com os deveres de Herbolo... Astronomia. – respondi convocando minha mochila.
- Pensei que você tinha a tarde livre hoje.
- Eu também. Preciso ir...
- Fim de semana? – perguntou ao que eu fingi não escutar andando a passos largos, tomando cuidado para não correr.
§*§*§
- Você parece estranha hoje, aconteceu alguma coisa? – sua voz era cuidadosa, como se receasse a resposta, embora ele nunca fosse admitir.
- Não Tonks. – disse secamente sem desvia os olhos dos manuscritos de História da Magia.
Depois do incidente daquela quinta-feira tomei uma razoável distância dele, e de tudo que o circundava, entretanto não consegui desviar-me dos compromissos dos finais de semana. Ao que antes me pareciam segundos estavam para se tornar horas de interminável tortura constrangedora.
Quando tentava falar-lhe sem dirigir os olhos aos seus e recusando biscoitos pela primeira vez, tentei notar algo de diferente nele, qualquer coisa. E Ted Tonks parecia mais enigmático que nunca. Em pouco tempo as piadas acabaram, e os sorrisos e as gargalhadas.
- Então é isso. – disse ele fechando o livro depois de uma leitura pouco enfática e informativa sobre plantas subaquáticas da Islândia. – Acho que nos vemos depois do recesso, não?
- Sim, mas meus horários vão ficar mais complicados...
- Black, se você não quiser continuar estudando comigo é só dizer. Não precisa inventar desculpas que sua nobre educação ensinou, você sabe que eu não sou um dos seus amigos riquinhos. – Ted Tonks estava zangado e fazia um esforço descomunal para esconder isso porque estralou seus dedos com uma violência que não era comum.
Enrubesci e imediatamente voltei meus olhos para o outro lado da mesa em que ele me encarava desafiadoramente. Como se sentisse minha garganta com gelada e o rosto quente eu sabia que não queria deixar de estudar. De estudar, inevitavelmente com a sua cada vez mais incômoda companhia.
- Não Tonks, é só que eu acho que... esqueça. Vemos-nos depois do recesso. – e senti-me nervosa pelo medo de ser incoerente demais.
- Você acha que? – insistiu cruzando os braços.
- Acho que estou com alguns problemas, e não tenho conseguido me concentrar na matéria. Logo, esperava que você entendesse meu súbito desinteresse.
Pela necessidade, ou pelo desespero, acabasse sendo muito mais vago do que convém. E não que fosse uma mentira completa, mas uma meia verdade.
- Ok. Feliz Natal, então. – disse com secura e bateu a porta às suas costas.
Por um breve momento desejei nunca sentir simpatia por Ted Tonks, isso parecia ser mil vezes mais coerente do que sentir meu coração como se estivesse sendo segurado por uma mão de gelo, e uma angústia nauseante comandar meu estômago por todo aquele mês em que minha atenção ficava cada vez mais dispersa.
Naquele Natal em que eu voltaria para casa e presenciaria a mais luxuosa festa que os Black poderiam oferecem a sociedade, entenda-se: para a sociedade saber com quem Rodolfo Lestrange estaria se casando dentro de muito pouco tempo.
E estava linda realmente. Os oficiais do Ministério fizeram vista grossa para todos os feitiços que eram proibidos e foram lançados naquela noite, simplesmente era inadmissível que não nevasse e Druella Black fez questão de consertar esse pequeno contratempo.
Depois de algum tempo ao som de minuetos tocados por uma orquestra de bruxos da Escandinávia, olhei pelo vidro que nos separava da noite gélida e da neve e lembrei de um pequeno globo que Joey tinha me mostrado um dia, um presente de aniversário de Tonks, que mostrava um globo ao qual se virando via-se a neve cair. A sensação de que estava na mesma situação era, antes de mais nada, absurdamente óbvia e de uma certa forma revoltante.
Minha recordação não passava de velas bruxuleando sobre nossas cabeças adornadas por tiaras históricas, os vestidos brancos que minha avó fez questão que usássemos, rendados, cintilantes, esvoaçantes, deslumbrantes. Jóias de família distribuídas a nós três com divisão referente a idade, o que fez Narcisa fechar a cara e não conversar com Bellatrix por quase três horas, quando ela simplesmente rendeu-se à dança de Lúcio Malfoy e tudo voltou a ser sorrisos delicados.
Não sabia dizer se Bellatrix sentia-se perturbada pela morte recente de Cetus, ela que havia acompanhado seu sofrimento até o último minuto, não deixando Oliver sequer se aproximar do estábulo ao qual ficou sozinha até a derradeira noite em que ela chegou em casa anunciando a Narcisa que teríamos que cuidar dos nossos Granianos, pois a doença poderia ser contagiosa.
Ela continha suas risadas agudas, e gestos abrangentes passando quase despercebida em meio à multidão se não houvesse aquele brilhante carmesim na tiara, que ela insistiu e colocou logo após a retirada de nossa avó sorrindo com deboche.
Sentada em um canto afastado do salão com um Sirius sorridente, e ligeiramente atordoado com o vinho que conseguiu tomar antes que Tia Walburga visse, ralhasse, e logo após sua saída nervosa ele voltasse a beber. Com os olhos desfocados e um sorriso imbecil ele via sem ver as pessoas que riam e dançavam em nossa frente com uma indiferença arrogante.
- Todos iguais, não acha. – e sua voz não estava tão enrolada quanto eu esperava. Um assomo de lógica atingiu meu cérebro quando mirei suas mãos levarem um cigarro à boca, provavelmente não era a primeira vez que Sirius bebia. Ou fumava.
- Apague isso. Não gosto do cheiro... – lembrava o escritório de papai, e provavelmente era onde ele havia arrumado.
Ele arqueou as sobrancelhas e dirigiu-me um olhar quase penalizado antes de atirar no chão o cigarro recém aceso, que foi devidamente pulverizado pelo atento elfo que rondava nossa mesa.
- Eu te fiz uma pergunta, não é muito educado uma dama, como você, deixar um cavalheiro, como eu, sem resposta. Aposto que se sua mãe presenciasse isso, faria você encerar as escadas por um mês.
- Não Sirius, não acho que essas pessoas são todas iguais. – respondi friamente tirando a taça de suas mãos.
- É porque não está olhando corretamente, desfoque seus olhos e você vai ver como todos eles não passam de borrões...
- Você está bêbado, Sirius.
Ele deu de ombros e sorriu mais ainda passando o fino polegar sobre meus olhos, e foi então que eu percebi que finas lágrimas corriam.
- Gostaria de saber o que fizeram com você em Hogwarts.
§*§*§
- E as festas?
- Foram boas. – e não pude conter um sorriso de alívio ao perceber que ele voltava mais animado, e aparentemente acometido de uma amnésia de quando nos despedimos. – E as suas?
- Foram... normais, eu acho. – respondeu e ao desvia seus olhos para baixo e levar a mão direita à nuca senti-o mortificado por alguma coisa.
Ao sentarmos para estudar senti ao mesmo tempo conforto e preocupação e resolvi esquecer o que quer que me tivesse deixado exaltada antes do Natal. A própria natureza de Ted Tonks fazia com que qualquer tensão fosse dissipada em cerca de alguns embaraçosos minutos.
Sua agilidade com a varinha na Transfiguração se refletia em Feitiços e Defesa Contra as Artes das Trevas, e provavelmente seria ofensivo se eu não deixasse transparecer qualquer dificuldade nas matérias. DCAT principalmente, Ted era um excelente duelista, embora não fosse páreo para Bellatrix que possuía uma agilidade muito além de qualquer outra pessoa.
Feitiços não-verbais eram realizados com a maior facilidade e sempre me pegavam desprevenida. Apesar de o motivo ainda não estar completamente desvendado, elaborei uma hipótese que envolvia algum feitiço proibido que Ted provavelmente havia me lançado em uma manhã em que Bella reclamou da minha falta de atenção, e desde aquele dia sempre era atingida, de maneira menos agressiva que ele conseguia.
Memorável foi uma noite em que nos empolgamos duelando e que finalmente pensei conseguir atingi-lo com um ‘estupefaça’ de desespero, quando eu me virava para escapar de um ‘impedimenta’ que passou faiscando pelo meu braço esquerdo no momento em que eu apontava a varinha sem olhá-lo para no momento seguinte escutar um baque surdo em que seu corpo inerte caia no chão.
Com passos cautelosos postei-me a trinta centímetros do seu tórax e repeti os feitiços de animação, senti uma palpitação e formigamento nas mãos quando segurei sua cabeça que pendia molemente sobre meus braços ao perceber que ele não reagia. Sua nuca estava molhava, e foi então que me lembrei que estávamos a horas lançando azarações sem parar. Passei os dedos sobre seus traços pensando seriamente porque não teria já me levantado e corrido para a enfermaria avisar alguém, aproximando meu ouvido do seu nariz para saber se ele ainda respirava, se eu via o seu peito subindo e descendo. Aquela noite eu tive certeza que Ted Tonks gostava de mirtilos, porque ele abriu os olhos rindo e provavelmente assustou-se ao perceber que eu estava em uma distância seguramente imprópria do seu rosto.
- Não tem graça, Tonks! Eu pensei que você tinha morrido! – esbravejei levantando-me em um reflexo aturdido.
Ele arregalou os olhos assustado enquanto eu sentia meu suor escorrer pelas minhas costas, e uma incômoda vermelhidão acalorada seguir para meu rosto como se todo o sangue do eu corpo tivesse fugindo de todas as extremidades do meu corpo e se concentrassem na minha face.
- Calma Black, eu estava só brincando. Você nem me acertou, o seu passou pela minha orelha e atingiu a parede... – e apontou para um pequeno buraco às suas costas.
Uma falta de ar tomou-me de assomo.
Talvez aquela fosse a hora de eu parar de estudar com Ted Tonks e retomar minha dignidade.
Chacoalhei a cabeça e dei-lhe as costas, arrumando a blusa para dentro da saia, e as meias até o joelho pensava em qualquer coisa que pudesse explicar meu comportamento.
- Isso não teve a menor graça, nem um pouco... – eu repetia entre gritos e acusações.
- Ok, me desculpe se foi assim tão horrível. – disse finalmente.
E foi naquela noite, após fechar bem o acortinado e abraçar os joelhos tão fortemente que meus braços ficaram marcados, que chorei pela primeira vez com mais raiva de mim do que dele.
Lembrava com uma realidade dolorosa os segundos em que levemente toquei seu rosto, aparentemente desacordado, e nas pontas dos meus dedos quando pequenos choques faziam minha respiração titubear ao passar pelas suas sobrancelhas grossas e disformes, ou quando aproximei meu ouvido do seu nariz e calafrios fechavam meus olhos maliciosamente.
Um Black não poderia se aterrorizar por tão pouco, e foi por provar simplesmente para mim mesma que aquilo não passava de alucinações descabidas que voltei à mesma sala nos próximos dias com propósitos sólidos.
Os Black não se rendem.
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N/a: soh pra esclarecer que mirtilo é uma fruta silvestre, que nos paises de lingua inglesa eh chamada de blueberry.
agradeço pelos comentarios e pela paciencia!
[esse foi possivelmente o capitulo mais longo que ja escrevi... espero reviews em!]
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