A Ligação



Capítulo Um

Ligação


Sofia cruzava as ruas movimentadas do centro velho da cidade cantarolando uma antiga canção que o avô costuma ouvir no rádio. Esfregava as mãos oleosas no blusão da escola com impaciência. Desde muito pequena costumava cruzar aquelas mesmas ruas, mesmo assim ninguém parecia notar sua presença.
A garota usava um blusão colegial encardido e machucado, calças jeans largas e desbotadas e um par de tênis muito velho. Seus cabelos longos, castanhos e opacos lhe caíam sem vida sobre os ombros escorrendo pelas costas e roçando a cintura magra. Trazia os livros e o caderno presos aos braços.
Não estava muito longe de seu prédio, que era conhecido por todos da região como “Balança, mas não cai”, um edifício sem reboco e de aparência frágil próximo a um parque ambiental abandonado e ao lado de dezenas de borracharias e oficinas mecânicas.
Estava faminta e um pouco chateada também. Não comera nada o dia inteiro, e o sol já estava alto no céu, anunciando o meio-dia. Era o seu último dia de aula no Ginásio Municipal do Centro. As suas notas haviam sido altas como sempre, mas estava inquieta com algo que uma colega de sala dissera a ela: Sofia, você não vive! Não que a garota não possuísse um pouquinho de razão, mas ainda assim não admitia que alguém pudesse se preocupar mais com a vida dela que ela própria.
Subira as escadas estreitas que levavam ao segundo andar virando o rosto para um senhor magro e barbudo que descia as escadas apressadamente. Ele era seu vizinho desde que ela se entendia por si, mesmo assim não podia cumprimentá-lo, já que seu padrasto havia discutido com ele há uns cinco anos. Na verdade Sofia não podia falar com quase nenhum morador do prédio, pois tanto a mãe como o padrasto achava que nenhum deles prestava.
O seu apartamento era diferenciado dos demais apenas pelo número 7 riscado a giz entre a janela e a porta escalavrada. A garota já podia sentir o odor nauseante de mortadela frita. Seu estômago revirou, num apelo sôfrego.
- Sufia, vem olhar a mortandela. – Pediu a mãe assim que bateu os olhos na garota.
Sofia odiava quando a mãe lhe chamava assim, Sufia, será que era tão difícil assim pronunciar “O” em vez de “U”? Sem reclamar largou os livros sobre o sofá da sala e foi até o fogão, onde uma frigideira respingava óleo contra a parede. Enquanto isso a mãe lavava as mãos na água fina que escorria por uma torneira enferrujada num banheiro apertado e fétido. A mulher ainda penteou os cabelos e se olhou no espelho antes de ir até a sala.
As fatias grossas de mortadela boiavam no óleo escurecido com um barulhinho peculiar. A panela de arroz aguardava em cima da mesa, paciente. Aquela seria a refeição principal dos sete membros que formavam aquela família.
- Mãe, tô com fome. _Queixou-se um dos irmãos gêmeos de Sofia, Gio.
- Já ta quase pronto. –Disse Dona Dora em um chiado aborrecido enquanto ligava a TV para ver as notícias locais. – Vai chamar teu irmão na casa da Neuza. Agora esse minino só quer vivê na casa alheia...
- Eu não, não sou empregado dele! –Respondeu o garoto mal-criado, antes de ir jogar-se em um pano úmido que forrava o chão frio.
Giovanni, mas conhecido por Gio, era um garoto de menos de oito anos. De cabelos negros e lisos que caíam sobre a testa numa franja espessa. Assim como o irmão gêmeo Gustavo, o Guto, possuía enormes olhos negros e um espírito irrequieto. Pareciam sempre estarem a ponto de ebulição, como costumava brincava Sofia.
A mãe e os irmãos comiam em silêncio, olhando para a TV hipnotizadamente, era o noticiário policial. O apresentador anunciava as mortes do final de semana. Sofia remexia a refeição com o garfo, observando a quantidade de óleo que escorria da fatia de mortadela. Guto e Gio iniciaram uma briguinha qualquer por causa de qualquer coisa – Difícil era os dois encontrarem motivos para não brigar.
-E o Dinho sem dormir em casa, me dá tanta preocupação! – Comentou penosamente Dona Dora.
Sofia também se lembrara do irmão mais velho com certa apreensão, nesta hora ele deveria estar perambulando pelas casas de amigos. Era o mais bonito de todos, com seus cabelos louros e olhos muito azuis. Também era a ovelha negra da família. Já havia se metido em enormes encrencas. Possuía um ar debochado, dentes alvos e grandes e uma grande propensão a estar sempre arrumando confusão.
Foi nesse instante que a porta se abriu e Miguel entrou na sala de estar, parecendo exausto e muito suado.
-Morrendo de fome. _ Disse, observando com pouca emoção o que os outros comiam. – Mortadela de novo, mãe? Ele poderia pelo menos trazer carne do açougue de vez em quando.
Miguel era um rapaz alto e magro, com cabelos encaracolados e castanhos, presos a um rabo-de-cavalo, que caíam em cachos sobre os ombros curvados. Era de longe o irmão que Sofia mais gostava e que também possuía muito carinho por ela. Seus olhos eram grandes como os dos gêmeos, só que mais castanhos e vivos.
-E você acha que o chefe dele deixa? Mal deixa ele trazer mortandela... –Respondeu a mãe, com a voz pastosa. – E essa aí ele deu porque já tava pra vencer.
-Eu quero dizer comprar, mamãe. Não ficar pegando coisa passada do seu Adair. Ele trabalha é pra isso...
-Aquele homem é unha-de-vaca. Não sei pra que ainda quer dinheiro, velho como tá. -Respondeu a mulher, fugindo do assunto. – E não tem família, não, o velho. Vai deixar tudo que tem pra nação...
Miguel não almoçou, tomou um banho rápido de água de balde (porque a água encanada faltara naquele instante), trocou o fardamento encardido da livraria onde estagiava, vestiu um outro par e logo saiu de casa, não sem antes entregar um pacote amassado à irmã.
-É um livro muito legal. Vende pacas lá na livraria. Esse aí veio com um defeito de fábrica, as páginas foram cortadas demais... Quase não dá pra ler as últimas linhas...
A menina retirou o embrulho e visualizou a capa do livro que se chamava As Crônicas de Nárnia: O leão, a feiticeira e o guarda-roupas. Sentiu-se estranhamente feliz com o presente. Uma ondinha de prazer percorreu-lhe o estômago por alguns segundos. Nunca ganhara um livro como aquele antes.
-Já tenho que ir, tá, Olga? Tchau.
A menina estava tão contente com o presente que não se chateou como de costume quando o irmão a chamava pelo primeiro nome, apenas sorriu. Herdara Olga de sua avó paterna, mas como nem conhecia essa senhora, não se sentia exatamente à vontade em usá-lo. Na verdade, preferia ignorá-lo.
Dona Dora observava a alegria da filha com severa incredulidade, para ela os livros não possuíam nenhuma serventia. Eram até mesmo um estorvo, ocupando lugar na casa. Com exceção, é claro, dos livros didáticos. Que fariam da filha uma “doutora”.

Sofia lia a centésima página do seu novo livro na laje do seu prédio, sentindo o vento frio do começo de noite percorrer seu corpo lentamente, uma brisa suave. Parou por uns instantes para apreciar a enorme lua cheia lá no céu, imponente em meio a estrelas pequeninas e brilhantes. E uma lembrança agradável chegou-lhe à mente. Ela vira aquele garoto mais uma vez aquela manhã. E como estava especialmente bonito com uma camisa pólo amarela e calças jeans. Para aonde será que iria? A garota não tinha a menor idéia. Sabia apenas de onde vinha, do escritório de advocacia em que a mãe trabalhava. Ela o vira sair de lá muitas vezes, acompanhado da mãe elegante e bonita. Fora num dia de chuva que ela o vira pela primeira vez. Estava correndo para chegar à escola seca quando foi ensopada por um carro que passava ali. Quem dirigia era a mãe dele, que estacionou e pediu desculpas. Ele estava lá dentro, mudo, apenas a observava com a face inexpressiva. Sofia também não conseguiu dizer nada, apenas ficou parada, até que a mulher envergonhada acelerasse o carro e deixasse o lugar. Isso já tinha seis ou sete meses...
A menina ainda fitava o céu quando escutou um grito alto que aparentemente vinha dos primeiros andares. Sofia levantou-se rapidamente e desceu a escada de madeira desgastada pulando os degraus, estava no quinto andar. Seguiu pelas outras escadas como um raio, finalmente entrando no apartamento de número 7.
Um homem alto e musculoso berrava e fazia gestos exaltados, apontando para um rapaz encolhido no canto da sala, com as mãos alvas sobre o rosto.
-Eu não quero mais esse vagabundo aqui, está me entendendo, Dora? Não quero mais... Eu não sou prego pra sustentar vagabundo... Marginal de merda!
-Eu-não-sou-marginal! –Respondeu Dinho pausadamente, com ódio nos olhos.
-Não me responde, não olha na minha cara! Pega seus molambos e vai embora daqui.
Sofia estava assustada, tremia da cabeça aos pés. Conhecia muito bem o padrasto e o irmão mais velho e não achava que aquela discussão terminaria bem. -Valdir, para com isso, Valdir. Deixa o Dinho ir dormir, ele não vai mais fazer isso. Dinho, vai te deitar.
-Eu vou embora, mãe. –Disse o rapaz com o olhar alucinado. – Não era isso que a senhora queria? Foi arrumar essa coisa ruim aí...
Valdir levantou o braço em direção ao rosto do rapaz, que recuou, e depois reagiu socando a face do padrasto com violência. E antes que o mesmo pudesse rebater, saiu correndo apenas com a roupa do corpo.
-Desgraçado, se cruzar o meu caminho eu mato. –Resmungou Valdir, tocando o rosto dolorido e trancando a porta com um baque. –Dora, não quero ver essa peste aqui, mas nem pintado de ouro, está me ouvindo?
Dona Dora encarava o marido, confusa. Não sabia qual partido tomar. O filho desaparecia por dias e quando chegava em casa era com a notícia de que a polícia estava à sua procura. Já o marido estava sempre bêbado e nunca se dera bem com os filhos do primeiro casamento dela. Na verdade era um imprestável, mesmo assim ela sabia que não poderia mais deixá-lo. O casamento com Valdir era algo irremediável.
-Mãe, como a senhora deixou o Dinho ir embora assim? _Perguntou Sofia, assustada. –E se ele não volta mais? Vai ficar onde?
A mãe não respondeu, apenas encarou o marido comer com um nó na garganta, estava magoada. Triste mesmo com a vida. Silenciosamente foi deitar-se, com o olhar perdido num programa de TV qualquer. Sofia deixou-se cair numa rede ao lado da de Miguel, que ela tinha quase certeza que apenas fingia dormir.

Eram quase dez horas da manhã do dia seguinte quando Sofia deu por falta do livro que o irmão lhe dera. Esqueceu-se na laje! Como ela podia ser tão esquecida? Voltou ao local o mais rápido que pôde, mas não encontrou nem sinal dele lá. Encarando as árvores frondosas e cheia de folhas amareladas no parque ambiental ao lado do edifício, a garota não pôde conter as lágrimas. Era a garota mais azarada do mundo.


- Sofiaaaaa... Sofiaaaaa... Sofiaaaaa...
A garota espiou pela janelinha do apartamento o filho da vizinha chamar seu nome. Chamava-se Cáio, e era um dos amiguinhos dos gêmeos.
-Ligação pra você.
-Pra mim?!
-É, pra você. Vem logo, sei quem é, não. Quer que eu pergunte?
-Não, não precisa. Peraí, já tô indo.
Sofia saiu do apartamento sorrateiramente, ela sabia quem deveria estar a ligar para ela. As mesmas ligações calculadas em todos os finais de mês. Sucintas e frias. Lembrava da última ligação que recebera dele como se ela houvesse ocorrido há poucos segundos. Fora mais ou menos assim:
-Alô?
-Olga, como vai?
-Bem, e o senhor?
-Sim, sim. Depositei o dinheiro em sua conta. Quatrocentos reais é suficiente?
-Acho que sim.
-Ótimo, tchau.
-Tchau.

Sofia tinha certeza que dessa vez não seria diferente. Preferia que a mãe não estivesse presente quando ele ligava ou ela insistiria para que Sofia pedisse mais dinheiro do que seu pai estava disposto a lhe dar. Por isso a garota atendeu ao telefone público lá no pátio tentando ter certeza que a mãe não lhe seguira.
-Olga? – A voz grossa e grave do pai penetrou o ouvido da garota.
-Ah, alô. Como vai? – Respondeu com a voz trêmula.
-Eu, muito bem. Depositei quinhentos reais em sua conta, é suficiente?
-Sim, tchau. –Disse apressada, olhando ao redor.
-Não, espere. Deve estar terminando o ginásio, não é?
-É, terminei.
-E já sabe onde vais estudar?
-Por enquanto, não...
-Bem, queria pagar uma boa escola para você. Queria que viesse a minha casa no sábado, para que pudéssemos tratar disso, o que acha?
Sofia demorou alguns instantes antes de dizer um sim. Esperara a infância inteira que o pai a convidasse para ir até sua casa.
-Sabe onde fica?
-Sei, sim.
-Ótimo, dez da manhã, então. Até logo.
-Até. –Disse Sofia, com a voz estranhamente diferente, e por um minuto se achara tola.
-Um... Abraço.
Ela não conseguiu dizer mais nada, apenas desligou o telefone, gélida.

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