Capítulo único
Puxou um cigarro aceso e tragou-o com ansiedade, sentindo a fumaça negra
invadindo os seus pulmões e queimando-os por dentro; depois, ergueu um copo com
uísque pela metade e levou-o suavemente aos lábios, encostando a língua no
líquido e sentindo o efeito anestesiante que o álcool provocava nela; há
poucos minutos, ela estivera a ponto de jogar-se pela janela do apartamento,
quando pensou que aquele não era o melhor jeito de se matar; seria algo muito
teatral e aterrorizante para quem estivesse passando na rua - não que ela se
preocupasse com o que fossem pensar dela. A imagem de boa moça, estudiosa e
inteligente já desaparecera de Hermione Granger, sobrando apenas um resquício
de preocupação. Agora ela era uma rebelde inconformada, como dissera a
Sra. Weasley.
- Você é jovem e bonita, Mione - ela dissera, na noite em que a convidara
para jantar. Hermione ergueu o rosto, com uma lágrima furtiva rolando
suavemente por sua pele alva. -, não precisa se degradar assim só por causa
dele... todos nós uma hora ou outra vamos partir... confie nos planos de Deus
e...
- Os planos de Deus - repetiu Hermione, com calma. - não eram planos que
envolvessem a minha felicidade quando Ele levou Harry... e não adianta... eu
não me conformo... será que nunca ninguém irá me compreender? - Ela largou
os talheres tinindo sobre a mesa e todo o seu corpo tremeu conforme ela chorou
amargamente; lágrimas quentes deslizaram por seu rosto e, então, ela levantou
e caminhou com calma pelo vestíbulo.
- Ou talvez, ele apenas quisesse levar Harry primeiro - disse, os braços
cruzados contra os seios. -, e depois virá me buscar...
A Sra. Weasley a encarou como se duvidasse de sua sanidade e, então, correu
para ela, abraçando-a maternalmente. Lágrimas rolaram por seu rosto; fora naquilo
que Hermione se transformara... aquela garotinha linda e estudiosa, era agora
uma garota sem um futuro definido, uma vida sem um sentido aparente e nenhuma
alegria visível. Era verdade que a própria Molly também se sentira assim
quando Artur morrera. Mas ela tinha os filhos de consolo.
E Hermione? O que ela tinha?
'Eu a compreendo' era o que Molly queria dizer. Mas apenas a abraçou e
sentiu braços finos contornarem seu corpo grande. Hermione desabou sobre si,
chorando copiosamente. Molly acariciou levemente seus cabelos castanhos e ergueu
os olhos para a lua cristalina que as banhava na semi-escuridão que
impregnava-se no vestíbulo.
- Tudo vai ficar bem, querida - disse ela, com suavidade. -, eu prometo...
Guarde suas promessas para si mesma, Sra. Weasley, pensou Hermione, em
seu quarto de motel, sentada no chão. Olhou para o cômodo a sua volta e sentiu
desprezo de si mesma; a mobília pobre e desparelhada não ocupava nem um terço
do pequeno quarto, com a pintura descascando em largos espaços e o chão com
uma grossa camada de sujeira; o colchão não passava de um trapo mal-cheiroso
sobre uma cama de madeira raquítica e com estragos por cupins.
Era àquilo à que ela se entregara... àquela vida sem sentido aparente...
sem um futuro definido, sem uma verdade a que se agarrar.
O que ela era? Quem ela era?
Com pesar ela lembrou-se de tempos em que exibia orgulhosamente sorrisos
verdadeiros, em festas de negócios, trajando longos vestidos colados que
mostravam seu corpo escultural; ao seu lado, Harry Potter, um rapaz lindo de
olhos verdes faiscantes, em seu terno comportado e bem feito. Eles eram felizes.
Em suas vidas pré-definidas para casais ricos, com suas casas arrumadas,
empregadas e seus empregos seguros.
Mas aquilo lhe escapara facilmente. E olha quem ela era agora.
Hermione ergueu-se com dificuldade, devido ao efeito do álcool em seu
organismo e tentou enxergar seu reflexo em um espelho quebrado e empoeirado;
arrastou-se pelo quarto e, com a manga da camisa que usava, limpou a superfície
lisa do vidro e encarou-se.
Seus olhos castanhos, que antes foram cheios de vida e expressividade, agora
eram sem foco e luz; seu cabelo desgrenhado parecia não ser penteado há dias;
seu rosto estava com hematomas que revelavam que ela se batera...
Uma lágrima deslizou por seu rosto, seguida por várias outras.
'Meu Deus, Hermione, olha no que você se transformou! Você chegou ao
fundo do poço...'
Harry... ela precisava de Harry... e só havia uma maneira de buscá-lo.
*-*
- Eternidade - ele disse, sorrindo para ela e, então, enclinando-se para
frente, encostou seus lábios nos dela; sentiu que sua língua penetrava com
suavidade sua boca e, então, investiu também, suas línguas circulando uma à
outra. Alguns segundos depois, desvencilhou-se, com um sorriso satisfeito
iluminando o rosto. - toda a eternidade. - murmurou, com os lábios úmidos.
- Para sempre...
- Juntos...
- Minha vida - sussurrou Hermione. - é você. E sempre será.
Ele ergueu as mãos dela, presas às suas e beijou-as com ternura.
- Eu te amo...
- Eu também.
*-*
Ela entregara-se a ele... e agora devia seguí-lo, independente para onde ele
fora. Encheu até a borda mais um copo de uísque, tragou o cigarro uma última
vez, tossindo com a fumaça invadindo seus pulmões e, então, puxou um pequeno
frasco do bolso. Abriu-o e despejou um pó branco no líquido âmbar; o pó
eferveceu por alguns segundos, mas depois, misturou-se ao uísque, tornando-se
invisível.
Hermione girou os olhos pelo vestíbulo a sua volta e inspirou ar para os
pulmões uma última vez.
Seria aquela a sua última visão... aquele lugar. Para, então, abrir os
olhos e ver a luminosidade do paraíso. O olhar apaixonado de Harry penetrando o
seu rosto e, então, um sorriso seguido de um abraço forte.
Ela o veria de novo.
Em breve.
Ergueu o copo e encostou os lábios na borda do vidro. Virou-o e bebeu tudo
de uma vez só. Jogou o copo vazio para o lado, ouvindo-o espatifar-se.
Mas não encarava nada, os olhos vidrados ao longe como se esperasse ver
Harry saindo da parede abruptamente; seu coração deu um solavanco doloroso. E
ela sentiu algo que fez com que suas pernas oscilassem, caindo de joelhos no
chão. Sua visão enegreceu e, então, seu corpo todo curvou-se para frente,
caindo.
'Até logo, meu amor'.
Morrera.
~
Amor é fogo que arde sem se ver
É ferida que dói e não se sente
É um contentamento descontente
É dor que desatina sem doer
É um não querer mais que bem querer
É solitário andar por entre a gente
É um não contentar-se de contente
É cuidar que se ganha em se perder
É um estar-se preso por vontade
É servir a quem vence o vencedor
É ter com quem nos mata lealdade
Mas como causar pode ser o seu favor
Nos mortais corações conformidade
Sendo a sí tão contrário o mesmo Amor?
(Luiz Vaz de Camões)
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