Cap único
Ele contemplava o céu sonhadoramente, observando aquela enorme imensidão escura cheia de estrelas. Observava o passado, observava tudo que havia mudado em sua vida. Agora finalmente tinha paz, tinha sua vida livre para... Bem, para viver, afinal! Porém...
Lembrava-se dos olhos cor de mel dela, lembrava-se do modo em que a abraçava fortemente com medo de perdê-la e com segurança de que nunca a deixaria. Dos tempos de escola, das diversas vezes em que enfrentaram todas aquelas pedras terríveis no meio do caminho.
Ainda podia sentir suas mãos entrelaçando em seu pescoço por trás, e seus lábios tocando-lhe levemente os seus. Ainda podia sentir seu perfume. O frasco do perfume predileto ainda não acabou e logo, logo teria que comprar outro para não se despedir daquele aroma que sentira tantas vezes.
Tantas vezes acordava com o cheiro do café da manhã e ainda podia sentir o cheiro daquele perfume em sua pele. Já havia se tornado seu cheiro natural.
A casa não era a mesma... A cama desarrumada e os travesseiros amarrotados, a louça ainda está suja, e afinal onde está o saca-rolha? Dentes batendo, concentrados em cumprir seu dever, sem ninguém para conversar à mesa.
Os recados no espelho já não mais estão lá como diariamente estavam. Sua escova de dente ainda permanece no mesmo lugar de sempre, ao lado da dele! E não, não é necessário mudar ou jogar fora. O guarda-roupa está impecável, ao contrário do dele.
As violetas na janela murcharam, mas água não faltou. O poodle está quieto e sempre repousa agora em seu colo, já que não há mais outro. Cafuné? Sempre! Mas nada... Passeios de dois em dois dias, como sempre. Os hábitos ainda não mudaram.
O cabelo? Como sempre, despenteado. Os olhos? Bem, continuam verdes, mas carregam várias lembranças e vários sorrisos. Só alguém especial como ela podia ver através deles. Só ela entenderia. Só ela...
Conselhos de todos os lados e as sugestões... Continuam as mesmas. Um sonho é algo que seu coração deseja, mas isso não significa que se realizará, significa? Acho que se significasse tudo voltaria ao normal. Tudo seria a ponto de vista do “meu” apenas. O “ele” não valeria nada, apenas o “eu”...
- Vamos? – disse ele para o cachorro repousado em seu colo, que rapidamente pulou para o chão, espreguiçou-se e dirigiu-se para o quarto.
Comeu uma coisinha aqui e outra ali e seguiu para o banheiro para fazer o mesmo ritual de todas as noites para depois, enfim, descansar.
O cachorro já o esperava na ponta da enorme cama de casal. Se o bicho fosse gente, diria que teria tornado-se homossexual, já que agora o cão dormia com o dono todas as noites. Ligou a televisão e ajustou um horário para que se autodesligasse.
Ficou assistindo aquela novela boba, já que a conta da TV a cabo expirou. Sabia que no dia seguinte o contrato seria cancelado. Ela não mais implicava pegando o controle remoto para trocar de canal. O porquinho de porcelana nunca mais foi “alimentado” para a viagem de férias.
Nunca mais se deu noticia de novos feitiços no Ministério. As carícias agora faziam falta, e a pequena estante de livros agora era coberta por uma notável camada de poeira. As fotos ainda sorriam radiantes. Os jovens rostos despreocupados depois daquilo tudo...
Era livre para qualquer coisa e qualquer uma... Mas não, poderia um dia ser, mas por agora não. Ainda era recente demais...
Ainda lembrava-se daquela promessa de verão feita pelos dois adolescentes. Arrependimento? Jamais! Não foi em vão. Nunca será! Pelo menos para ele, pois os que viam faziam sempre a mesma expressão.
Era preferível ficar relembrando o que passou do que se lamentar de não ter feito certas escolhas e etc... Saúde boa, emprego maravilhoso... Não há coisa melhor, mas é claro, com a companhia de alguém que se ama ficaria melhor ainda!
Ainda tinha a aliança no dedo. Já havia se tornada parte dele. Para que tirá-la não é mesmo? Caía tão bem na mão dele. Todos notariam o brilho de longe, e as mulheres não iriam persistir uma vez que vissem o anel.
Na parte de dentro continha dois H’s gravados no fio de ouro. Quando nada mais era suportável, ele olhava aquele símbolo e acalmava-se novamente.
Caiu no sono, deixando o controle remoto escorregar por entre os dedos até cair no chão, fazendo o cão levar um susto e sair da cama. Era impressionante como os óculos não empenavam! Passado algum tempo, novamente o mesmo sonho em que mudava toda a trajetória da história: ele no lugar dela.
Porém não gostaria que ela sofresse o que ele estava sofrendo. Seria pior para ela, mesmo ela tendo um coração forte e uma mente preparada. Embora a armadura de ferro fosse notável, ambos sabiam que havia um coração de cristal no interior de tudo aquilo. Só era preciso enxergar com outros olhos.
Olhos... Aquele tom de mel indescritível! Era sensacional como ele perdia-se dentro deles. Seu mundo era outro. Sua vida era outra! Era tão incomum que nem mesmo as fotografias conseguiam captar toda aquela essência extraordinária.
Talvez este poderia ter sido um dos fatores pela qual se apaixonara por ela. Era por causa de toda aquela beleza interior que ela era linda exteriormente.
Acordou com a luz do luar que iluminava seu rosto. Contemplou o céu novamente. Nada mudou, até que notou uma enorme estrela cadente correndo pelo céu. Deu um sorriso para si mesmo e deixou a janela como estava: aberta. Agora não iria mais dormir, pois sabia que no dia seguinte tudo seria diferente.
Tudo mudaria.
Tirou sua aliança e depositou-a perto da foto preferida pelos dois, onde sorriam abraçados num dia de verão, quando ele a pediu em casamento. Sim, ele sabia que agora seria tudo diferente. O cachorro, sentindo o que o dono sentia, pulou em cima da cama abanando o rabinho.
Sim, amanhã tudo mudaria.
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