Lady Glamis
O sol já tinha se posto há muito quando um carro estacionou diante do castelo. O velho vigia observou um jovem casal sair do automóvel. O rapaz, de cabelos negros e óculos, olhava atentamente o castelo. A moça, uma bela ruiva de olhos intensamente verdes, puxava a capa negra para mais junto do corpo, tentando se proteger do vento frio que soprava naquela noite. Os dois caminharam até a guarita, o rapaz na frente.
- Boa noite. - o moreno cumprimentou, sorrindo - O senhor é o vigia do castelo?
- Sim. E vocês são turistas?
- Por assim dizer. - o rapaz respondeu.
- Sinto muito, mas o castelo está interditado. E mesmo que não estivesse, esse não é o horário de visitas.
- Interditado? - a ruiva perguntou, curiosa - Porque?
A voz dela era doce, e o velho trouxa se pegou pensando que, se anjos têm voz, elas certamente seriam como a da jovem mulher à sua frente.
- Fantasmas. - ele respondeu com um sorriso bobo - O rei Duncan está mais ativo do que nunca, procurando seu assassino, clamando por vingança e pedindo castigo para o usurpador de seu trono.
- E Lady Glamis? - ela perguntou, agora num tom ansioso. Mas o velho nada percebeu.
- Lady Glamis... Cujos irmãos eram odiados pelo rei Jaime V... Ela foi acusada de bruxaria e queimada viva, sabiam? Todos os dias ela vai à capela, rezar. E nas sextas, à meia noite, os fantasmas dos injustos juízes que a condenaram também comparecem e pedem perdão por tê-la condenado...
O rapaz sorriu.
- Chegamos então num dia bom... Hoje é sexta feira.
Ela assentiu, virando-se novamente para o vigia, os olhos verdes profundamente concentrados nos olhos do velho.
- Você pode nos deixar passar? Gostaríamos de conhecer Lady Glamis.
- Porque vocês querem conhecer um fantasma? - ele perguntou, sua fala começando a enrolar.
- Precisamos da ajuda dela. Por favor, nos deixe passar... - a ruiva continuou, pedindo com voz suave.
O vigia abriu com dificuldade os portões do castelo, dando passagem aos dois. A ruiva passou primeiro. Antes de também entrar, o rapaz apertou a mão dele.
- Obrigado, meu velho.
Lílian observou com um sorriso Tiago entrar e os portões serem novamente fechados.
- Ele não vai se lembrar de nada amanhã. Eu disse que não precisava azarar o pobre coitado.
- Bem, considerando o estado dele, eu acho que se você tivesse pedido que ele pulasse de um precipício, ele teria pulado. Eu só não entendi porque não conseguimos aparatar pra cá.
- Glamis deve estar sob a mesma magia que Hogwarts. Deviam fazer isso no ministério também. Se Voldemort decidir atacar lá, vai ser uma grande confusão.
- Não sabemos qual o encanto que impede que se aparate e desaparate dentro de Hogwarts. É magia dos fundadores. Mas isso não significa que o ministério esteja desprotegido. Há outras maneiras de impedir que Voldemort chegue até nossos núcleos mais necessários, como St. Mungus e o próprio ministério.
- Bem, isso não é importante agora. Temos que encontrar a capela.
- Você podia ter perguntado ao vigia.
- É muito cansativo usar os feitiços que aprendi com Hades. E eu não queria abusar da mente do pobre homem também.
- Mas agora vamos ter que encontrar a capela pela maneira mais difícil: procurando...
Antes que Lílian pudesse responder, sentiu como se atravessasse uma cortina de água gelada. Ela voltou-se com uma careta, deparando-se com um velho fantasma com ricas vestes. Ele tinha uma careta de desgosto, enquanto observava a ruiva.
- Você tem o toque da morte. - a voz do fantasma soou rouca, como se ele não a usasse por séculos - Só tive essa sensação no dia em que fui traído pelo punhal de meu próprio primo.
- Rei Duncan? - Tiago foi quem perguntou.
- Esse é meu nome. Ouvi o que conversavam. Procuram pela capela?
- Pode nos ajudar? - Lílian olhava ansiosa para os olhos do rei, ainda sentindo o estranho frio que sempre acompanhava seu corpo, desde que vira a face do anjo da morte, Thanatus.
- Não posso me aproximar daquele lugar. A dama que lá vive não aprecia companhia e ela tem poder suficiente para expulsar quem não deseja. Mas posso lhes indicar o caminho. - ele disse, fazendo uma exagerada mesura.
Tiago e Lílian seguiram o fantasma pelo castelo. A garota, que estava logo atrás do rei morto, notou uma mancha vermelho vivo na sobrecasaca azul dele.
- Como você morreu? - ela perguntou, sem conseguir refrear a curiosidade.
- Eu estava velho e sem herdeiros. Indiquei então meu primo Macbeth ao trono. A ambição desmedida dele e de sua esposa não deixaram, no entanto, que eles esperassem o ciclo de minha vida terminar naturalmente. Ele me assassinou à traição durante o sono, quando eu nada podia fazer para me defender, com um traiçoeiro punhal.
Eles seguiram o restante do camiho em silêncio. Meia hora depois, o rei parou diante dos portões da capela.
- Aqui eu vos deixo. Espero que tenham sorte naquilo que procuram e que a Dama os possa ajudar.
Os dois assentiram e adentraram a suntuosa capela do castelo de Glamis. O rei Duncan ainda os olhou por algum tempo antes de desaparecer. Agora que estavam sozinhos, Lílian e Tiago observaram o lugar. A capela tinha dois andares. No primeiro, onde eles estavam, havia o altar e os bancos para que os fiéis pudessem se sentar. Sobre o altar, enormes castiçais e um belo relicário de ouro. O pavimento seguinte era cheio de balcões, como camarotes de uma ópera. O silêncio naquele lugar parecia quase solene.
- Não falta muito para a meia noite. O que acha? - Tiago perguntou.
- Vamos primeiro assistir. Não quero ter que enfrentar uma dezena de fantasmas. Não é uma sensação muito prazerosa a de atravessar um deles. Quando os juízes se forem, nos apresentaremos a Lady Glamis.
Tiago assentiu, observando a capela.
- Temos que encontrar então um lugar para nos esconder.
- O maroto aqui é você. Essa é sua tarefa.
Ele sorriu, apontando para um dos vários balcões escuros do primeiro andar.
- Podemos assistir de camarote.
Lílian assentiu e logo eles estavam subindo uma escada em caracol. Lá em cima havia cheiro de mofo e muita poeira, mas nenhum dos dois se importou. Lílian se acomodou no primeiro balcão e Tiago foi para outro, de frente para o dela.
O tempo parecia andar vagarosamente enquanto eles esperavam, os corações batendo quase que no mesmo ritmo. Lílian tirou do bolso um pesado relógio prateado. Dez pra meia noite. Ela descansou a cabeça contra as pequenas colunas que adornavam o lugar. Estava tão ansiosa que tremia. Não, não era apenas ansiedade... Desde que Voldemort a enfeitiçara, ela sentia um frio intenso, que parecia lhe querer congelar até a alma.
Cinco minutos. Tiago observava por entre as frestas o cabelo vermelho de Lílian. Ele tirou do bolso da camisa uma pequena caixinha de veludo. Com cuidado, abriu-a, revelando a delicada aliança. Estava com ela no bolso desde que Sirius lhe contara a verdade e ele decidira ir atrás de Lílian. O moreno segurou o pequeno aro entre os dedos, respirando fundo. Fechando os olhos, ele sorriu. Toda aquela confusão terminaria aquela noite...
Nenhum dos dois estava atento quando soou a meia noite, tão envolvidos estavam por seus pensamentos. Mas a mudança na atmosfera da capela fez com que percebessem que, o quê quer que estivessem esperando, tinha começado.
Lílian levantou a cabeça lentamente, tentando ao mesmo tempo se esconder na escuridão. O altar e demais paramentos da igreja haviam sumido, dando lugar a duas mesas como as dos professores de Hogwarts. Ao longe, sinos tocaram longamente. E, através das paredes atrás do que era o altar, pálidos fantasmas começaram a surgir. Eles se sentaram à mesa, um burburinho confuso enchendo o ar.
Alguns minutos se passaram antes que tudo voltasse a ficar silencioso. As portas da capela se abriram com uma rajada de vento e uma forma difusa de mulher entrou no recinto. Os longos cabelos encaracolados estavam presos por uma touca rendada e o longo vestido era cheio de brocados. A pele do rosto e das mãos era perolada, o que dava um ar mais real à fantasma. Ela parou no meio do salão, observando cada um daqueles rostos tão odiosos.
- Então vocês vieram? - a voz dela reverberou pelas grossas paredes do salão.
- Lady Glamis, nós... - começou um fantasma baixinho.
- Cale-se, maldito! - ela interrompeu rispidamente - Quantas vezes tenho que dizer que nunca terão meu perdão?! Saiam do meu castelo, desapareçam das minhas vistas!
- Milady... - outro começou.
- Eu não quero ouvir essa ladainha de novo. Saiam daqui antes que eu perca a paciência.
- Você não pode continuar com isso. - um fantasma mais alto levantou-se - Por Merlin, Caterine, não pode nos condenar eternamente por um erro do passado!
- Milorde... - ela disse com evidente desprezo na voz - O senhor, de todos que aqui se encontram, é o que menos tem direito de me dirigir a palavra. Você me traiu, "senhor" Barão. Não tem direito de exigir coisa alguma de mim. Agora vão embora.
A discussão parecia ter se encerrado ali. Lílian fez um muxoxo. Pelo que ouvira sobre aquelas reuniões, esperava ver algo mais interessante. Mas, aparentemente, aquelas frases já tinham sido repetidas a exaustão, não havia muito mais a acrescentar, além de que ela não conhecia aqueles personagens para entender o que se passava entre eles. Nunca poderia entender de que traição falara Caterine Glamis, nem o que ligava o fantasma do Barão àquela que fora uma bela senhora.
Os fantasmas se levantaram, capisbaixos. Logo o salão voltou ao que era antes e apenas Lady Glamis ficou, estranhamente deslocada entre os paramentos cristãos. Lílian e Tiago levantaram-se de seus esconderijos quase que ao mesmo tempo, logo chegando diante do altar.
- Lady Glamis? - Tiago perguntou incerto.
- Tiago Potter e Lílian Evans... Fiquei me perguntando quanto tempo a sucessora de Helena demoraria para me procurar. - ela virou-se para o casal - Não se espantem por eu saber quem são e porque estão aqui. As notícias correm muito rápido no mundo dos não-vivos.
- Você pode nos ajudar? - foi a vez da ruiva perguntar.
- Talvez. Depende de muitas coisas. Quanto estariam dispostos a sacrificar? Até onde iriam para preservar o que sentem um pelo outro?
Lílian observou a fantasma com determinação.
- Se já sabe quem somos e porque estamos aqui, deve também saber a resposta dessa questão.
- Sim... Você é tão impetuosa quanto ela. Helena também teria dito isso se fosse ela a me procurar, não o contrário. Mas eu precisava dos favores dela, por isso ofereci uma troca. Poderia ter pedido muito mais e ela teria me dado... Mas isso não importa agora.
- Você quer então uma troca? - Tiago perguntou.
- Vocês não possuem nada que eu deseje.
- Mas vai nos ajudar, não é? - Lílian agora a olhava ansiosa.
- Eu nada posso fazer, minha senhora. Apenas indicarei o caminho. Você deverá reverter o feitiço sozinha, assim como Helena o fez. Esse segredo de nada vale além do túmulo. - Lady Glamis olhou o casal tristemente, especialmente para Lílian - Só há uma maneira de cancelar a maldição. Você deve romper a morte com vida, sabendo que a vida irá morrer.
- A senhora poderia parar de enrolar e ir direto ao ponto? - Tiago estava começando a se irritar.
- Tiago!
- Ele tem razão, senhora. - a fantasma disse com um sorriso que não lhe chegava aos olhos prateados - Não é fácil o que deve fazer e eu sinto muito por isso. O sacrifício deverá durar apenas uma noite, mas será a a noite mais sofrida que terá.
- Eu não me importo. O que devo fazer? - a ruiva perguntou decidida.
- Deve gerar uma criança.
- Você deve ter enlouquecido! - Tiago finalmente explodiu - Como a Lílian pode engravidar se eu sequer posso chegar perto dela?
- Há outros modos de se gerar uma vida além de se deitar com um homem, senhor Potter. - a fantasma respondeu com evidente desprezo.
- Ela tem razão, Tiago. - Lílian virou-se para Lady Glamis, séria - Mas o que acontecerá com a criança?
Lady Glamis ficou por alguns instantes em silêncio, como se perdida em alguma antiga lembrança. Finalmente, ela encarou os olhos verdes ansiosos da jovem guardiã.
- Não haverá criança. O sacrifício da vida dela irá retirar a maldição de você. Ela sequer chegará a se formar em seu ventre.
A ruiva empalideceu. Tiraria uma vida para voltar a sentir o toque de alguém. Seria aquilo certo?
- Lílian? - Tiago aproximou-se, mas ela se esquivou sem pensar duas vezes.
- Eu sei que é doloroso pensar que vai gerar uma vida, usá-la e depois descartar. - a fantasma começou - Mas é a única maneira.
- Não está facilitando as coisas, Lady Glamis. - Tiago voltou-se para ela, obviamente irritado.
- Eu preciso pensar. - Lílian disse finalmente - Preciso ficar sozinha por algum tempo.
Ela saiu da capela, pensativa, deixando Lady Glamis e Tiago para trás. Aquilo não era justo. Lílian apertou o pingente em seu pescoço. Será que ela tinha o direito de fazer aquilo? Mesmo que a criança jamais chegasse a se formar, que poder tinha ela para decidir sobre a vida e a morte de alguém? Mais do que isso. Não era uma pessoa qualquer, mas um filho seu. Se já tinha escrúpulos com a vida de pessoas que sequer lhe eram conhecidas, como poderia usar a de um filho. Merlin... Teria Helena passado pelo mesmo dilema que ela agora enfrentava ou fora em frente sem pensar nas consequências?
O que eu daria para correr meus dedos pelo seu cabelo
Para tocar seus lábios, segurar pertinho...
Tiago observou as portas se fecharem atrás de Lílian, e sentou-se num dos bancos, sem olhar para a fantasma que flutuava discretamente próxima a ele. Porque as coisas tinham que ser tão difíceis? Fechando os olhos, ele quase podia ver a ligação que existia entre eles. Podia sentir o quão confusa estava ela, a tristeza que lhe ia na alma. Gostaria de poder fazer alguma coisa, mas aquela decisão cabia a Lílian. Ele sabia ser egoísmo de sua parte pensar apenas nos benefícios do fim da maldição. Não queria perder Lílian, mas sabia que daquela decisão dependia todo o futuro de ambos.
Se você me dissesse que chorasse por você, eu choraria
Se você me dissesse que morresse por você, eu morreria
Olhe para mim: não existe preço que eu não pagaria
Para dizer estas palavras a você...
Uma vida... Apenas o sacrifício de uma vida gerada por aquela que está sob o toque da morte poderia reverter a maldição. Lady Glamis observou o rapaz de cabeça baixa, sentado à sua frente. Se tivesse sido ele o enfeitiçado, não haveria como a Thanatus ser revertida. E ela sabia perfeitamente bem como era ter que afastar o ser amado.
Se Lílian decidisse não fazer o sacrifício, Caterine sabia, aquela história terminaria em tragédia. Podia ler isso no brilhos dos olhos dos dois jovens. Afinal o amor não obedece à razão, não se conforma com a renúncia, tem sempre um último impulso mesmo em uma batalha perdida. Se tivessem que se separar, eles não sobreviveriam. As lembranças, os sonhos, tudo sempre iria conspirar para que eles jamais se curassem de sua loucura... A dor anestesiaria todos seus outros sentidos até que finalmente cedessem a vida, para descobrir que nem após o túmulo teriam paz...
E eu estarei lá até que as estrelas não brilhem
Até que os céus estourem e as palavras não rimem
E eu sei que quando eu morrer, você estará em minha mente
E eu vou te amar - Sempre.
Enquanto Lílian caminhava distraída pelo castelo, Tiago lutava contra o sono e o cansaço, tentando se concentrar na ligação entre eles, como se soubesse que isso poderia levar algum apoio à ruiva. Lady Glamis sorriu ao sentir a magia que fluia no ar. Lá fora, o sol começava a nascer.
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