Encontro no ônibus



Todo dia é sempre tudo igual. 1,2, 3, 4 passos subindo as escadas do metrô. Chego no final do lance de 30 degraus exausta. Pegar metrô e ônibus à noite, depois de um dia cheio, saindo da faculdade, para voltar pra casa é, no mínimo, estafante. Mas enfim, não há muito a ser feito, exceto respirar mais uma vez e continuar.

Ao chegar no topo das escadas, olho para o meu ônibus no ponto – está a mais de 100 metros à frente. Não dá tempo de correr, eu penso, mas à medida que vou chegando mais perto e o ônibus continua parado - a vontade de correr é grande.

Aperto o passo. Se eu não pegar esse, o outro demorará horas. Olho no relógio: 23:23. Já está tarde. Tem que dar tempo, tem que dar... Faltam uns 30 metros, mas ainda tem gente subindo no ônibus...

Decido correr, o que se torna uma cena patética. Minhas calças largas, frutos de uma recente perda de peso, começam a cair. Em um braço, a enorme bolsa que cisma em escorregar e, no outro, meu material da faculdade e, é claro, um dos livros de JK Rowling. Já é tradição sair de casa com um deles. Hoje, eu tinha escolhido “Harry Potter & a Ordem da Fênix”. Acho que a proximidade com o filme me fez ter vontade de reler esse diversas vezes.

Ser fã de Harry Potter é gostoso, mas também é difícil. Você perde horas de seu tempo pensando nas mais mirabolantes teorias, acessando fóruns, comunidades do Orkut, vendo os filmes, indo em eventos e, é claro, lendo os livros. No meu caso, é tudo um pouco pior. Eu tenho a péssima (será realmente péssima?) mania de estudar os livros, grifar nomes e lugares, fazer anotações. Desnecessário dizer o quanto eu me identifiquei com o “Príncipe Mestiço” ao ler o sexto livro. Enquanto o Harry descreve o livro usado de Poções, eu fico lembrando dos meus próprios exemplares em casa...

Mas enfim, voltando à cena do ônibus depois do metrô. Deu tempo de entrar. Subi as escadas, ainda puxando as calças para cima. Como sou desengonçada.

- Obrigada – disse ao motorista, esboçando um sorriso simpático. Não pude deixar de ver a mim mesma com todos aqueles livros e não pensar na Hermione, nos corredores de Hogwarts, e se sua reação seria igual, quando pegasse um ônibus como eu. Provavelmente ela também estaria com dificuldades ao carregar todos aqueles livros, visto que – infelizmente – não poderia carregá-los com magia. Bem que seria útil agora, eu penso.

Ainda havia umas quatro pessoas à minha frente antes de passar pela catraca, o que de certa forma me deu o tempo necessário para me recompor. Sim, além de tudo o ônibus estava lotado. Lembrei da comunidade do Orkut “Cruciatus no ônibus” e ri sozinha. Alguns devem ter me achado louca – fã de Harry Potter sofre.

Entreguei a mísera nota de dois reais ao cobrador e passei. Obviamente, o motorista fez uma curva íngreme bem na hora em que eu ia passar pela roleta e eu quase caí, mas tudo bem, já passou. Tirei os olhos dos meus livros e olhei para os bancos, procurando um lugar.

Tudo bem, havia vários. Mas, ao olhar para o lado esquerdo, vi algo que há muito tinha medo de ver – pela minha reação.

Por Merlim, um cara igual ao Snape.

Absolutamente igual. Devia ter uns... 20 anos? Estava sentado lá, de blusa preta, os cabelos caídos no rosto e o nariz levemente angulado, exatamente como eu imagino o Severo dos livros e, sinceramente, baseio todas as minhas idéias megalomaníacas a respeito do personagem. Uns dez anos mais novo do que eu imagino, talvez. Mas igual.

Hum, ok, o que eu faço então?, pensei. Comecei a andar e ele olhou. Engoli seco. De repente, outra curva – meus livros caíram no chão. Ótimo, pensei. Agora sim, a babaca oficial. Ele olhou para os livros e viu “A Ordem” por cima deles, e depois olhou para mim. Eu me abaixei pra pegá-los, mas ele foi mais rápido e, depois de pegar, me entregou com aquele olhar – sim, aquele olhar. Vocês conseguem imaginar?

Disse “obrigada” e continuei andando. É óbvio que eu não iria sentar ao lado dele – seria humilhação demais e eu acabaria estragando tudo, falando qualquer besteira. Resolvi ficar em pé de frente para a porta. É, aqui está bom. Pude ficar olhando para ele de costas, os cabelos na altura dos ombros.

O ônibus parou – faltavam apenas alguns quarteirões para eu descer. Não sabia onde ele morava, mas não era tão longe de mim – afinal, estávamos a uns três pontos do final. Dei o sinal, só depois percebendo que ainda estava longe do ponto.

Espero que o motorista não abra antes. Ele sempre faz isso.

Mal pensei nessa possibilidade, e o tal levantou. Estava disperso – apertou o sinal, mesmo sem ver que a luz já estava acesa porque alguém apertou antes. Na porta, só eu. E agora ele.

Não fique olhando, não seja idiota, pensei, então virei a cara, fingindo que estava muito interessada na cor do asfalto que aparecia atrás do vidro da porta.

Farol. O ônibus parou novamente.

Ele olhou uma vez, depois virou. Olhou novamente, desta vez para os livros nos meus braços. Quando o sinal abriu, ele virou novamente e disse:

- Você gosta de Harry Potter?

Não, estou levando o livro pra passear, pensei, mas achei muito pouco educado para dizer. No final das contas, a pergunta dele foi pior do que qualquer uma que eu poderia ter feito, mas ao mesmo tempo foi a pergunta mais perfeita para o momento...

- Sim.

Não tive culpa, o sorriso escapou. Era demais a visão da realidade. Um cara igual ao Snape, no ônibus, perto da minha casa, perguntando se eu gosto de Harry Potter? E eu achando que era monótono pegar o ônibus no mesmo lugar todas as noites!

- Eu também gosto pra caramba – ele continuou – Você já leu o sexto livro?

- Já, já sim. E você?

- Umas cinco vezes – ele respondeu, rindo.

- Eu também já li várias vezes todos! Minha nova mania é ficar grifando nomes e lugares! – disse empolgada, mas ao mesmo tempo parecendo uma coisa estupidamente idiota de se dizer. Para a minha sorte, ele pareceu não achar.

- É engraçado porque dizem que é um livro para crianças, mas eu não acho, sinceramente! Minha mãe me olha e me pergunta quando eu vou crescer!

Ele continuava falando com um sorriso nada exagerado no rosto, segurando no banco à sua frente. Trazia nas costas uma mochila visivelmente pesada – provavelmente estava carregando tantos livros quanto eu, ou mais.

Eu não sabia o que responder. Não queria parecer idiota, é claro, mas ao mesmo tempo não queria que a conversa morresse ali...

- Qual livro você mais gostou? – perguntei. É, até que foi uma pergunta sensata. Ele olhou pra mim e pensou durante alguns milésimos de segundo, então respondeu:

- Ah, o sexto, com certeza! Mas depois de ler esse eu comecei a gostar bastante do segundo também!

Merlim, igualzinho a mim. Não vou dizer isso porque senão vai parecer só um pouco forçado, né?

- E você? – ele perguntou.

- Ãhn... Eu gosto de todos, é claro, mas o sexto é especial. Tem toda aquela coisa do Snape e tal, e eu adoro o Snape. Com certeza é o melhor personagem da série e o meu preferido!

Bom, nem preciso dizer que foi a coisa mais idiota que eu poderia ter dito. Afinal, ele era a cara do Snape, e é óbvio que sabia disso. Ele ficou me olhando, sem dizer nada.

Burra, pensei. Parabéns, agora que a conversa morreu mesmo.

Mas ele não silenciou tanto assim. Durante um segundo, nossos olhares se encontraram. E mesmo estando silêncio, nós entendemos exatamente o que tinha acontecido.

- É o meu também – ele disse, sorrindo sem abrir os lábios. Fiz o mesmo, tentando não ficar vermelha ou cair com outra curva que o motorista fez. Desta vez, eu não me importaria.

Chegou a minha hora de descer. O ônibus parou, eu desci. Ele desceu atrás. Virei para a direita, ele para a esquerda.

- Er... Tchau – ele disse.

- Tchau – eu respondi, dando um sorriso sem graça.

Virei novamente para atravessar a rua e apertei meus livros contra o corpo, ainda tentando assimilar tudo o que tinha acontecido. Vou escrever uma fic com isso, pensei, e a caminho de casa eu fui bolando o que escreveria.

- Ei!

Alguém chamou. Olhei para trás.

Era ele.

Virei e o vi correndo em minha direção, atravessando a rua. Trazia em suas mãos a minha pequena agenda, que eu carregava junto com os livros no meu colo.

- Desculpe – ele disse – Ela caiu junto com seus outros livros no ônibus, mas eu precisava saber o seu telefone.

E estendeu a mão, para me entregar a agenda.

- Tudo bem – eu disse, sem reação. O que eu devo fazer, brigar porque ele ficou com a minha agenda?

- Me desculpe – ele disse, percebendo minha indecisão – Invadi sua privacidade, né? Desculpe.

Ele me olhou com extrema culpa nos olhos e virou as costas, para ir embora. Fiz o mesmo, ainda pensando em tudo o que tinha acontecido. Não estava brava, só... Não sabia como reagir a algo assim.

- Ah! – ele disse, e eu virei novamente.

- Olha, tudo bem, não tem problema... – eu disse, enquanto ele voltava.

- Não é isso. Eu só queria te perguntar uma coisa.

- Ta, então fala.

- Você... Ainda acredita nas intenções do Snape, mesmo depois do que ele fez?

Eu entendi na hora o que ele quis dizer. E, se a minha resposta fosse outra, tudo aquilo provavelmente nem teria acontecido.

- Sim - eu respondi, e ele sorriu.

- Tá bem então – ele disse, virando-se devagar para trás e ainda sorrindo, como se não pudesse conter a reação – Boa noite!

- Boa noite! – eu respondi, e virei em direção à minha casa. Fã de Harry Potter sofre sim, pensei. Mas também vive cada coisa boa...

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