Capanga



Eram dois, ele e ela, ambos na flor da beleza e da mocidade.
O viço da saúde rebentava-lhes no encarnado das faces, mais aveludadas que a
açucena escarlate recém aberta ali com os orvalhos da noite. No fresco sorriso dos
lábios, como nos olhos límpidos e brilhantes, brotava-lhes a seiva d’alma.
Ela, pequena, esbelta, ligeira, buliçosa, saltitava sobre a relva, gárrula e
cintilante do prazer de pular e correr; saciando-se na delícia inefável de se difundir pela
criação e sentir-se flor no regaço daquela natureza luxuriante.
Ele, alto, ágil, de talhe robusto e bem conformado, calcando o chão sob o
grosseiro soco da bota com a bizarria de um príncipe que pisa as ricas alfombras, seguia
de perto a gentil companheira, que folgava pelo campo, a volutear e fazendo-lhe mil
negaças, como a borboleta que zomba dos esforços inúteis da criança para a colher.
Caminhavam por uma recha, bordada de ilhas de mato, que emergiam aqui e ali
do verde gramado. Pela ramagem frondente das árvores e renovos que abrolhavam,
percebia-se a proximidade de uma grande manancial, e entre as crepitações da brisa nas
folhas, como um tom opaco desse arpejo da solidão, ouvia-se o murmúre soturno do
Piracicaba, que leva ao Tietê o tributo caudal de suas águas.
Sete horas da manhã haviam de ser. A luz de um sol esplêndido fluía no éter,
que a trovoada da véspera tinha acendrado. O céu arreava-se do azul diáfano onde a
fantasia se embebe com a voluptuosidade casta da criança a aconchegar-se dentro, tão
dentro do grêmio materno.
Bem longe do céu, porém, e bem presos à terra andavam os olhos dos nossos
dois amiguinhos, que nem haviam reparado sequer na limpidez da atmosfera. Ainda
estavam na sazão feliz, em que respira o céu, como o ar da vida, e o aroma do campo,
quase sem sentir.
As flores, que a noite desabrochara; aos frutos silvestres que enfeitavam a copa
das árvores; aos passarinhos que trinavam embalando-se nas franças dos coqueiros; ao
que era da terra e bem da terra, iam os impulsos desses jovens corações, quando não se
volviam um para o outro, a reverem-se entre si.
O céu, essa imensa tela azul, que foi cúpula de um berço, o da luz, e será mais
tarde véu de um leito, o da vida; a alma só o procura, só o contempla, quando a dor a
prostra. Mas para aquela que sorri e folga, o firmamento é uma terra por descobrir e
debuxa-se vagamente na imaginação, como a montanha azul desse vale de lágrimas.
Algumas vez deixava o rapaz de seguir com o passo a menina, para acompanhála
com a vista. De braços cruzados sobre a coronha da clavina de caça, fitava os grandes
olhos pardos com tal possança d’alma, que mais parecia absorver e entranhar em si o
gracioso vulto, do que enlevar-se em sua contemplação.
Acaso, em uma dessas ocasiões, voltou-se de chofre a menina para ver onde
ficara o companheiro e deu com ele a fitá-la daquele modo estranho.
- Que me está olhando aí? Nunca em viu? exclamou com surpresa, mas travada
sempre da petulância que animava-lhe todos os movimentos.
Não era para você! respondeu rápido o moço, baixando a cabeça de modo a
ocultar o rubor que lhe afogueava o rosto.
Para confirmar o disfarce, armou a clavina e fez pontaria a um cardeal que se
embalava no topo de uma palmeira.
- Miguel!...
Esta súbita exclamação rompeu dos lábios da menina, trêmula de susto,
espanejando-se com a mesma alegria, que não se estancava nunca, e alguma vez
represa, borbulhava depois com força maior.
De repente parou; imóvel, quase estática, uma lividez mortal jaspeou-lhe as
feições, enquanto os olhos se pasmavam em um ponto além.
A orla do mato assomara o vulto de um homem de grande estatura e vigorosa
compleição, vestido com uma camisola de baeta preta, que lhe caía sobre as calças de
algodão riscado. Apertava-lhe a cintura rija e larga faixa do couro mosqueado do
cascavel, onde via-se atravessada a longa faca de ponta com bainha de sola e cabo de
osso grosseiramente lavrado.
Em uma das bandoleiras trazia o polvarinho e munição; na outra suspendia um
bacamarte, cuja boca negra e sinistra aparecia-lhe na altura do joelho esquerdo, como a
face de um dragão que lhe servisse de rafeiro.
As mangas da camisa, tinha-as enroladas até o cotovelo, bem como a parte
inferior das calças que arregaçava cerca de um palmo. Usava de alpargatas de couro cru
e chapéu mineiro afunilado, cuja aba larga e abatida ocultava-lhe grande parte da
fisionomia.
Vinha ele em direção oblíqua ao caminho dos dois jovens, e mal avistou a
menina, logo desviou-se do rumo que levava no intuito de evitá-la; mas achando-se por
isso fronteiro com Miguel, escapou-lhe o gesto de contrariedade e tomou o partido de
parar à espera que os outros se fossem, deixando-lhe passagem livre.
De seu lado estremecera o rapaz ao dar com os olhos no homem da camisola, e
tal foi a comoção produzida pelo encontro, que derramou-lhe no semblante a expressão
de um asco misto de horror, arrancando-lhe involuntariamente dos lábios esta
exclamação:
- Jão Fera!...
Não se abalou o mal encarado sujeito; e Miguel, corrido do primeiro assomo de
terror, que lhe embotava os brios de valente e galhardo, reagia com uma travessura de
rapaz.
Levou ao rosto a espingarda fingindo armá-la, e apontou para o outro.
- Atire! disse aquele com a voz arrastada e indolente.
E promovendo um passo, apresentou com desgarro o peito à mira da espingarda
de Miguel, que já arrependido do gracejo, abaixava a arma.
- Pois olhe! tornou o homem da camisola com a mesma voz de arrasto: fazia um
bem a mim... e a outros!
- Por que, Jão?
Fora da menina esta pergunta. Colocada além de Miguel não vira a menção do
tiro, feita de brinquedo por este, e só voltou-se e compreendeu o que passara, ao ouvir
as últimas palavras.
- Esta vida me cansa! respondeu Jão com arquejo.
- Estás com saudade da forca? retorquiu Miguel com chasco de desprezo.
Ouviu-se um fungar, como o das narinas da onça quando bufa, e arrepia ao mais
bravo caçador, que sente lhe estar ela tomando faro ao sangue tépido. De um pulo
achou-se o facínora a rosto com o rapaz, que armara intrepidamente a espingarda,
preparado a morrer com dênodo.

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