As Princesas de St. David

As Princesas de St. David



Nathalie estava perdida em seus pensamentos enquanto olhava pela janela do Airbus A380. Uma lágrima corria quente pela superfície de sua bochecha. Talvez o motivo de suas lágrimas fosse o mesmo motivo que a tivesse feito embarcar naquele avião. Talvez o motivo fosse sua súbita despedida sem informações com Duda. Talvez o motivo de suas lágrimas fosse o mesmo motivo que por várias vezes ela chorou e sentiu náuseas durante todo o tempo que passou em Xangai.

Olhou através da janela e viu lá embaixo o escuro Mediterrâneo. Agora sua viagem estava chegando ao fim. Em poucas horas estaria desembarcando no aeroporto de Londres.

Ficou pensando em Duda por um tempo. Sabia que tinha magoado o namorado ao partir sem dizer o porquê daquilo tudo, ficou se perguntando se ainda iria revê-lo. Talvez ele nunca a perdoasse. Mais uma lágrima lhe escorreu pela face. Não sabia que caminhos seu futuro incerto trilharia. Tinha apenas uma certeza: a mesma que lhe fez atravessar meio mundo em direção a Inglaterra.

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-Alô?- Nathalie atendeu ao telefone celular. Fazia poucos minutos que tinha saído de casa e estava descendo às escadas do metrô.

-Srta. Nathalie?

-Ela mesma.

-Aqui é o Sra. Cave. Você deve lembrar-se de mim.

-Claro que sim. Eu e Victorie – a lembrança daquele nome a fazia estremecer.- alugávamos o seu apartamento em Midle End.

-Exato. E é exatamente sobre Victorie que eu preciso falar com você.
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Remexeu-se mais uma vez na poltrona do avião, pediu à aeromoça que lhe trouxesse uma xícara de chá. Seus pensamentos voaram em direção a Victorie na velocidade das turbinas Rolls Royce que sustentavam aquele avião. Sentiu um leve enjôo, que ela sabia muito bem, não tinha nada a ver com o fato de estar voando.



Nathalie e Victorie eram amigas inseparáveis. Nasceram quase no mesmo dia e a única barreira que até os três anos delas existiu foi o muro de suas casas. Faziam tudo juntas e a primeira palavra de uma foi o nome da outra.


Nathalie morava numa bela casa em Spelthorne, Surrey, perto da igreja St. Hilda´s. Ela era inglesa, porém seus pais, Camila e Leonardo Rodrigues, eram de origem brasileira. Eles vieram morar na Inglaterra no início da década de 80, anos antes de Nathalie nascer. Ela não sabia muito sobre o Brasil e tampouco perguntava a eles sobre lá. Sempre que perguntava, apenas ouvia um suspiro e depois o silêncio. Aprendeu desde cedo que este era um assunto que não deveria ser dito dentro de casa.

Ela era morena assim como seus pais, porém, não apresentava traços fortemente brasileiros. Tinha os olhos verdes, que diziam ter sido da avó, e a pele bem mais clara comparada a eles, talvez pelo clima frio da Inglaterra, mas isso ninguém saberia dizer. Era bonita como Camila, mas diziam que seu sorriso era perfeitamente igual ao pai.




Victorie morou, até os três anos, em um pequeno casebre aos fundos da casa do vizinho de Nathalie. Diziam que Victorie era uma cópia exata da mãe. Seus olhos eram de um castanho bem escuro e protegidos por longos cílios recurvados. Seus cabelos negros aveludados e suas sobrancelhas espessas e igualmente negras a faziam lembrar uma princesa da antiga Pérsia. Sua mãe, Hanan, ela nunca conheceu. Vick, como todos a chamavam, era orfã.

Hanan era saudita. Seu nome originava-se de uma escritora libanesa famosa na Inglaterra. Muito antes de mudar-se para Surrey, Hanan era a governanta da casa de um rico escritor inglês chamado Jim Walters. Jim Walters tinha 26 anos quando, com o dinheiro do pai, mudou-se para Riad, capital da Arábia Saudita. E com 29 anos, acolheu a órfã Hanan que criou como se fosse sua filha.

Jim e Hanan passaram seis anos morando no condomínio Oásis em Riad antes de irem para a Inglaterra. Jim gostava de dizer que o condomínio fazia jus ao seu nome. E não era exagero, dentro daqueles condomínios, que eram peritos em abrigar estrangeiros, existiam um dos poucos lugares no país em que se podia beber à vontade, ver mulheres sem véu e abaaya e ter um pouco de liberdade religiosa, coisas proibidas fora dos muros do condomínio. Por estes motivos, Hanan não se apresentava, tampouco Jim, como mulçumanos.

Jim e Hanan mudaram-se para Surrey no fim da década de 70. Dois anos após a mudança, Jim morreu em um acidente de carro. A casa foi herdada pelo irmão de Jim, Michael. O testamento, Hanan nunca o viu.

Hanan viveu apenas dois anos após a morte de Jim. Durante esses anos, trabalhou arduamente como empregada na casa de Michael até engravidar de Victorie. O dia de seu nascimento, foi o último de Hanan.

Victorie viveu seus três primeiros anos com a cozinheira da casa de Michael. Desde pequena, Vick adorava brincar com sua vizinha, Nathalie. Corriam com suas perninhas curtas por toda a casa de Nath, Michael não permitia que Vick entrasse em sua casa. Gostava de brincar com as bonecas que Camila comprava para Nath, o único brinquedo que Vick tinha, eram as panelas que “por mágica” sumiam da casa de Michael.

Por três anos, a cozinheira fez o que pode para sustentar a pequena criança, mas visto que estas condições já não lhe existiam, propôs aos pais de Nathalie que a adotassem.

É claro que, como crianças, Nathalie e Victorie pouco entenderam sobre a real situação que estava para lhe acontecerem. Camila e Leonardo não sabiam como lidar com aquela situação mas negar, definitivamente, não era uma opção. A cozinheira dizia que já não tinha dinheiro nem para se sustentar e, contrariamente à toda a dor que o sofrimento de mãe poderia lhe causar, sentia que aquela era sua única opção. Anos depois, o casal Rodrigues entederia que o real motivo da cozinheira se separar da menina que criara como filha, não tinha nada a ver com o pouco dinheiro que ela recebia. Anos mais tarde, a cozinheira morreria de câncer.

Victorie e Nathalie eram como irmãs e assim tratadas como tal. Estudavam juntas no escola de St. David e sentavam uma ao lado da outra. Nathalie era uma menina meiga e doce. Sensível desde seus pés até a ponta de seus cabelos. Victorie era igualmente meiga e doce, mas sensibilidade era de longe uma característica sua. Talvez fosse pelo sangue árabe correr por suas veias, mas o fato era que eram inúmeras os pequenos cortes e cicatrizes em seus joelhos e cotovelos, enquanto Nathalie só existia uma pequena marca, no calcanhar, por causa da sandália.

Elas eram consideradas “As princesas de St. David”. Não havia um menino que, ao vê-las passarem, não girasse sua cabeça para vê-las melhor, como se sua vida dependesse disso. Andavam juntas não importa o lugar que fosse, exceto um: a sala do diretor.

Victorie era mestre em se meter em confusões e em ser a primeira a assumi-los quando denunciada. Nathalie também era boa em se meter em confusões, mas era a melhor em negá-los.

Por diversas vezes, juntas, elas jogaram bombinhas nos vazos sanitários, pixaram os corredores da escola, insitavam os meninos a tramar contra o diretor, pulavam o muro da escola para matar aula. E por algumas várias vezes foram pegas e na detenção a única que se apresentava era Victorie.

“Um dia, ela se toca.” Pensava Victorie sem se importar com as atitudes da “quase” irmã.

As melhores amigas de Nathalie eram Britany, Diana, Julie, Anna, Isabella, Evanna e Jessie. Os melhores amigos de Victorie eram Brian, Frank, Robbie, David, Robert e Louis. Talvez o fato de todos os amigos de Nathalie serem mulheres e de todos os amigos de Victorie serem homens pudesse revelar alguma coisa. Mas não. Apenas ajudava aumentar ainda mais os mistérios das “princesas de St. David”.

Nathalie, aos olhos dos que não a conhecessem, faria com perfeição o papel de “patricinha” enquanto Victorie seria a “garota rebelde”. Mas a verdade é que, no fundo, uma completava a outra e, diziam, nenhuma conseguiria viver sem a outra. Esta afirmação seria a que mudaria o destino delas para sempre.
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Nathalie tomou mais um gole de seu chá. As lembranças que a Sra. Cave. dona do apartamento de Midle End. lhe trouxe era,de longe boas. Discussões e brigas eternas eram constantes naquele velho apartamento. O final era sempre o mesmo. Nath se trancava no seu quarto enquanto Vick se colocava a chorar no sofá da sala.



Nathalie decidiu formar-se em Medicina. Victorie, Direito. Ninguém sabia ao certo os motivos que as levaram a decidir sobre tais carreiras, porém, ninguém se arriscaria em dizer que elas poderiam estar erradas por tais escolhas.

Elas começaram a dividir um apartamento em Midle End com objetivo de entrar para a Universidade de Londres. A missão delas era estudar com todas as forças para serem admitidas na famosa e antiga federação de colégios e instituições.

Nathalie se formou no Colégio Imperial de Londres, na faculdade de Medicina do Hospital St. Mary. Foi nesse mesmo hospital que ela continuou trabalhando por três anos. Já Victorie não concluiu a faculdade de Direito na famosa London School of Economics. O motivo: Victorie engravidou do namorado recém-formado na mesma faculdade.

A gravidez não planejada foi o fim dos sonhos de Vick e de sua longa amizade com Nathalie. O fato de sua melhor amiga ter feito um ato de tamanha irresponsabilidade só trazia à tona os motivos para mais uma briga no apartamento de Midle End.

Para muitos, aquele seria o fim da amizade de mais de 20 anos. Os funcionários, que trabalhavam com Nathalie no Hospital St.Mary, já não perguntavam mais o motivo de seu mal-humor quase diário. “Problemas com a Vick” era o que todos sempre pensavam.

Por vários meses, Nathalie e Vick viveram esse clima pesado dentro do apartamento de Midle End. Vick conformada com a idéia de que seria mãe e com a grande barriga cada vez mais evidente, não mais abria brechas para outras brigas com Nathalie. Porém, o que elas não sabiam, era que o cruel destino que lhes aguardava havia apenas começado.

O nome do filho de Vick seria Matthew. Numa sombria noite de chuva em novembro, Vick gritou de seu quarto. Nathalie, com a ajuda de seu vizinho Todd, a levaram para o carro. Era examente meia-noite quando os roncos do antigo motor do Mustang de Todd cruzaram as ruas de Londres em direção ao Hospital St. Mary.

A sala de espera do Hospital St. Mary, na opinião de Nath, nunca chegaria aos pés do que se poderia dizer sobre acolhedora. Havia um relógio sobre o corredor que levava a sala de parto. Ela nunca havia visto um ponteiro de minutos dar tantas voltas no relógio por tanto tempo. Já devia ser a quinta ou sexta volta dele.

-Aceita um pouco d’água, Dra Rodrigues?

-Sim, por favor.-disse Nathalie tentando em vão sorrir ao enfermeiro Willian, que estava de plantão naquela madrugada.- Muito obrigado.

Havia mais de sete horas que Victorie havia entrado pelas portas do hospital. A única resposta que ela havia tido dos médicos que corriam para lá e pra cá no corredor era de que havia tido complicações.

“Complicações! Quem ele acha que eu sou pra me dizer só isto? Como se sete nesta maldita sala já não fosse bastante óbvio que acontecera complicações! “

Pouco mais de vinte minutos depois, o médico permitiu que ela entrasse. Como uma velocista de 100 metros rasos, Nath se precipitou pelo corredor. Conhecia aquele hospital na palma de sua mão, não precisava de doutor nenhum para que lhe indicasse o caminho.

Ao entrar na sala, o alívio tomou seu corpo. Na cama, Victorie dormia profundamente enquanto a enfermeira levava um choroso bebê em direção aos berçários. Olhou para o aparelho perto da cama de Vick, seus batimentos eram estáveis. Olhou mais uma vez para o recém-nascido nos braços da enfermeira, parecia mais uma versão masculina e pequena da mãe.

Porém, algo naquela sala lhe chamou atenção. Nathalie já participara várias vezes de cirurgias e partos. Sabia que geralmente no final de cada caso bem sucedido, os médicos e enfermeiros comemoravam por tal ato. Lembrou-se de que certa vez naquele hospital, o sucesso de uma cirurgia de extrema delicadeza no cisto da coluna de um senhor idoso. O clima era de um carnaval fora de época naquele dia, porém, o clima naquela sala parecia mais funeral. Algo estava errado.

Ninguém naquela sala sorriu ao ver Nathalie. Na verdade, os olhos daqueles funcionários vestidos de branco era de medo e expectativa. Pareciam apreensivos, como se esperassem que de súbito Nathalie pulasse no pescoço deles para enforcá-los.

Nath olhou para o doutor mais alto ali. Seu coração estava ao pulos, parecia que ia lhe sair pela boca. Ela viu os olhos do seu ex-colega de faculdade, o Dr. McCloue, encherem-se de lágrimas. Antes que ela pudesse dizer alguma coisa, McCloue indicou a porta do quarto:

-Vamos conversar lá fora.

Nathalie assentiu. O desespero lhe tomava conta do corpo. Sentiu seus olhos queimarem e sua visão do corredor embaçar. Quentes gotas lhe escorriam pela face. Seus pensamentos sobrevoaram toda sua vida. A infância em Spelthorne, as confusões em St. David, as brigas em Midle End.

O Dr. McCloue olhava apreensivo para Nathalie. Eles se tornaram grandes amigos na faculdade. Por diversas vezes, estudavam juntos em Midle End, lugar em que conheceu Victorie. Sabia o quanto Victorie era importante para Nath. Sabia que iria se sentir culpado pelo resto da vida. Sabia que não era sua culpa, mas a dor de Nath iria tirar seu sono pelo resto da vida.

-T-tom, por favor, me diz logo o que aconteceu.- o tom de voz de Nathalie só ajudava a piorar a situação de McCloue.

-Nath... Você também é médica e entenderá perfeitamente a situação crítica pela qual sua amiga está passando. – o tom de voz de McCloue era como se a tivessem esbofeteando. – Primeiramente quero que saiba que Matthew está perfeitamente saudável.

Nathalie chorou. Se alguma coisa acontecesse a Vick o que seria de Matthew?

-Agora sobre a situação de Vick...- a voz do doutor pareceu falhar. – Ela está fora de perigo, porém – Nathalie odiava esses “mas”, “porém”... – Ela entrou em coma profundo.

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